domingo, 23 de agosto de 1998

CRÍTICA: VIOLÊNCIA GRATUITA (Áustria 1997) / Vida inteligente nas telas.. de Recife!

Enquanto o Sul “europeu” fica preso ao (curto) circuito americano, o Nordeste “atrasado” recebe filmes de arte

Uma cinéfila em férias no Nordeste tem poucas esperanças de assistir a algum filme bom. Mas não é que, no meio da programação de julho, cujo único público-alvo parece ser a criançada, quando proliferam Godzillas, fins-de-mundo e outras aberrações, surge vida inteligente nas telas? Não nas telas catarinenses, evidentemente. Mas já é um começo. A nordestina cidade de Recife passa filmes de arte. Filmes fora do (curto) circuito americano. Filmes que dificilmente veremos por aqui, no “Sul” europeu, auge da civilização.
Qual não foi minha surpresa ao encontrar uma sala lotada num sábado à noite, em Recife, para assistir a uma produção desconhecida? Está certo que lá os cinemas respeitam a lei e aceitam meia entrada, mas tanto público assim? Ironicamente, o filme que vi era austríaco. Quando foi a última vez que a Joinville de colonização germânica viu uma produção falada em alemão? Aliás, falada em qualqeur outra língua fora o inglês, inclusive o português? A sétima arte virou monoglota, a ditadura impera, e nós continuamos assistindo sentados.
Em Funny Games, apenas o título é em inglês. Desconfio que seja para criar um duplo ou triplo sentido, já que isso pode significar desde “jogos engraçados” até “caçadas estranhas”. Em português, para evitar confusão, traduziram para Violência Gratuita. De fato, de divertido o filme não tem nada. Conta a história de uma família austríaca de classe média, talvez classe média alta, que gosta de música clássica, de velejar e de jogar golfe, e que tem um menino de uns 8 anos e um cachorro. Pronto. Isso é tudo que sabemos sobre a tal família.
Numa manhã ensolarada, enquanto a mulher começa a planejar o almoço, ela é surpreendida em sua cozinha por um jovem que lhe pede alguns ovos. Ela dá e, aparentemente sem querer, o rapaz quebra os ovos e deixa cair o celular da família na pia com água. Quando ela se zanga, surge um outro jovem que implora para testar um valioso taco de golfe e puf, lá se vai o cachorro. Rapidamente, a família inteira é imobilizada pelos dois rapazes vestidos impecavelmente de branco, com luvas igualmente brancas. Parece que a dupla não quer roubar ou estuprar, e sim apostar se as vítimas conseguirão fugir ou se terminarão assassinadas. Por quê? Ninguém sabe.
Notamos que o filme definitivamente não é americano quando o garoto corre risco real de vida (tabu em Hollywood), quando um dos bandidos dialoga com o espectador, quando a família não oferece a esperada resistência heróica. E, sobretudo, quando constatamos que o filme não é violento, pelo menos não graficamente. O clima é brutal, a tensão é absoluta, mas não há sangue ou sequer palavrões. Como em peças de Shakespeare, a violência ocorre fora de cena, e o que imaginamos é sempre mais grotesco do que aquilo que é mostrado.
O tema da tranquilidade familiar rompida por vândalos e vilões lembra clássicos como Horas de Desespero (onde Humphrey Bogart faz um refugiado) e, menos, Laranja Mecânica. Porém, justamente por Funny Games não ser americano, constatamos que o perigo é iminente e que o final pode não ser feliz. Refletimos sobre a fragilidade humana, a impotência masculina (nem tudo é sexual na era do Viagra) e os tempos modernos. Tão modernos que não deixa de ser sarcástico que, em um dos raros momentos de fuga, o casal gaste quase todo seu tempo tentando secar o telefone celular. Isso para não mencionar o grande destaque dado a um mero controle remoto.
É difícil dizer se Funny Games é arte ou não, mas indubitavelmente é cinema que faz pensar, que perturba. Nem todo filme deve levar à reflexão, assim como nem todo filme deve ter como única função o entretenimento. Não seria bárbaro se tivéssemos os dois modelos aqui em Santa Catarina? Além do mais, só pra levantar uma bandeira bem hollywoodiana, nunca torci tanto pela pena de morte de psicopatas quanto em Funny Games. Sabem como é, chega uma hora em que os efeitos especiais de costume, as perseguições de carro, os tiros certeiros, as demolições de prédios, cansam. Será que todas essas explosões não alteram o ciclo menstrual da gente?
Refilmagem cena a cena: o original de 97 e o remake de 2008 (leia a crítica aqui).

quarta-feira, 27 de maio de 1998

CRÍTICA: IMPACTO PROFUNDO / Mas será o fim do mundo?

Impacto Profundo dá novo sentido à expressão “cinema catástrofe”: um filme tão ruim que nada se salva

O mais recente filme de ação em cartaz no Estado tem a profundidade de um pires. Aliás, minto. Um pires é menos raso. Impacto Profundo é um festival de clichês, da primeira à última cena, e, além disso, é cinema pra criança. Pode levar o filhinho sem medo de atentado ao pudor, pois não há palavrões, violência ou sexo. A entrada é livre. Felizmente, a saída também.

A história é igualzinha a de Armageddon, com Bruce Willis, previsto para estrear em julho. Nos últimos tempos, Hollywood enfrenta tamanha falta de criatividade que não se contenta em fazer apenas um filme medíocre sobre o mesmo tema. Agora são dois. Recentemente foi a vez de O Inferno de Dante e Volcano se digladiarem na bilheteria, com vitória fácil do primeiro, que era bem melhor. Em breve assistiremos o duelo Impacto Profundo X Armageddon, Dreamworks X Universal. Quem vencerá? O que importa? Desde já é uma batalha inglória.

Ah sim, o "tema" em questão: um meteoro vai se chocar contra a Terra e causar a provável extinção da espécie humana. Ou, pelo menos, dos americanos, que é no que se resume o mundo moderno desde Independence Day. O presidente (Morgan Freeman, que é negro. Só em ficção mesmo um povo racista elege um afro-americano. Jesse Jackson não conseguiu sequer ser candidato) envia um grupo de astronautas para destruir a ameaça. Eles falham, ou melhor, dividem o meteoro em dois, um pequeno e um grandão. Até aí já se passou metade do filme. O chefe-da-nação parte para o plano B, que consiste em colocar um milhão de americanos em minas subterrâneas, onde estariam protegidos e poderiam perpetuar a espécie. Duzentos mil são pré-selecionados, e os outros 800 mil são sorteados democraticamente. Imaginem se isso fosse real. Deste um milhão, quantos seriam psicopatas armados que atirariam em crianças saindo das escolas nas cavernas?

Mas Impacto Profundo não está nem um pouco preocupado com a realidade, é claro. Idéias que poderiam ser interessantes, como o pensamento dos escolhidos, saques, suicídios, novas seitas etc., são totalmente desprezados. A diretora Mimi Leder, a mesma de O Pacificador, prefere gastar o tempo mostrando fotos de infância de um dos protagonistas. Contando ninguém acredita. E falando em Deus, que o filme é profundamente religioso- quer dizer, voltando ao pires.

E tudo isso embalado a muita música melosa. Acho que não existe um só minuto de silêncio. O cinema atual chegou ao ponto de um personagem falar algo banal, como "oi", e entrar a música arrasa-quarteirão. Esse pessoal deveria assistir a Os Pássaros, de Hitchcock, para aprender como se cria clima e suspense sem um pio. A trilha sonora de Impacto é de James Horner, responsável por Titanic. A culpa não é da música em si, mas do uso que fazem dela. É simplesmente ridículo.

O elenco também é de amargar. Há grandes atores como Morgan Freeman, na pior interpretação de sua carreira, Robert Duvall velhinho e decadente, Vanessa Redgrave desesperadamente precisando de dinheiro - estão todos lá. Mas hors-concours mesmo é Téa Leoni, esposa do astro de Arquivo X David Duchovny na vida real. Stallone finalmente teria um par à altura, alguém que poderia contracenar com ele sem lhe roubar cenas. Téa é 100% inexpressiva e também parece sofrer de paralisia facial. Uhm, é ela a protagonista; um show à parte. E ela é uma das pré-selecionadas para perpetuar a espécie!

Entre outros momentos memoráveis, há o encontro do casal de adolescentes no meio do trânsito caótico. O filme é tão moralista e infantil que o único par romântico é composto por dois púberes que até se casam no papel. Apesar de não pensarem em sexo, ganham um bebê no melhor estilo "toma que o filho seu". É para reforçar a idéia de família, de que casal sem filhos não pode ser uma família. Tal qual o mundinho Disney, onde Mickey e Donald não têm filhos, mas sobrinhos, o casal aqui consegue um bebê sem precisar passar pelo desgastante processo de reprodução.

Quando os astronautas lacrimejantes, logo antes de salvarem o planeta, começam a se despedir de suas famílias, tudo que consegui pensar foi "meu Deus, quantos astronautas são?". Sim, porque a meia dúzia diz adeus um por um. A esposa de um dos heróis invade a sala de controle com o bebê no colo, se joga na frente da câmera e diz: "Filhinho, mostra seu foguetinho pro papai". Juro que não estou inventando. É uma cena antológica: o maior símbolo fálico do filme faltando apenas alguns segundos para a aniquilação total da Terra.

E é aqui que me senti especialmente lesada: a gente agüenta esta bomba toda pra ver somente a colisão de um meteoro (o menorzinho)? O tal do impacto profundo destrói só algumas cidades, e só por causa de umas ondas do mar. Definitivamente não vale o preço do ingresso ver a estátua da liberdade decepada ou a Casa Branca destruída (de novo? Eles economizam na maquete?). Impacto Profundo não tem nada de profundo, nem de impacto. Mas a verdade é que dá novo sentido à expressão "cinema catástrofe": um filme tão ruim que nada se salva.

domingo, 1 de março de 1998

CRÍTICA: OU TUDO OU NADA / Comédia leve só faz rir

Esta crítica foi triturada pela edição do jornal, que cortou tudinho. Ficou assim. E não tenho mais a original.

Está em cartaz no Estado o grande azarão do Oscar, Ou Tudo ou Nada. A comédia britânica, totalmente fora do circuito hollywoodiano, já é um enorme sucesso. Mesmo antes das quatro indicações ao Oscar, o filme havia rendido mais de US$ 150 milhões em todo o mundo - um lucro gigantesco para um filme que custou apenas 3 milhões. E a verdade é que ele merece.

Ou Tudo ou Nada é uma comédia leve, despretensiosa e curta (não chega a uma hora e meia de duração), que cumpre seu papel: o de fazer rir. Há cenas memoráveis e hilárias, como a da seleção do grupo e, principalmente, a dos rapazes na fila do seguro-desemprego não resistindo e requebrando-se ao som de "Hot Stuff", de Donna Summer.

O diretor do filme, Peter Cattaneo, é um estreante que conduz a história com ótimo pique, apesar de aqui e ali existirem quebras de ritmo. O maior porém de Ou Tudo ou Nada é mesmo a falta de profundidade dos personagens, que poderiam estar melhor delineados. Mas o filme mais do que vale a pena. Seu trunfo é não ser americano, não ser pasteurizado como as comédias de lá, não dar a mínima para a correção política tão em voga. E, claro, ser muito divertido.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 1998

CRÍTICA: AMISTAD / Um filme embaraçosamente ruim

Esta foi a primeira crítica que escrevi pro jornal, e foi assim que saiu. Em 1998, faz tempo...

Steven Spielberg ataca novamente. Desde 1993, ele vem alternando filmes abertamente comerciais com produções que talvez, quem sabe, possam ser consideradas "artísticas" e abocanhar algumas estatuetas do Oscar. Se deu certo com A Lista de Schindler, por que não funcionaria com Amistad?
Um dos problemas, que contamina praticamente todo o circuito cinematográfico americano, é que Amistad tenta ser artístico sem abrir mão de ser também comercial, para recuperar os US$ 80 milhões investidos. Porém, só consegue ser pretensioso, e como tal foi descartado pelo Oscar.
Apenas quem não viu o filme pode ter se espantado com as indicações, que preferiram o britânico e alternativo Ou Tudo ou Nada e só conferiram quatro para Spielberg - melhor ator coadjuvante (Anthony Hopkins), fotografia, figurino e música. Não deve ganhar nenhuma, enquanto houver justiça e bom senso.
Amistad está cheio de boas intenções, mas, até aí, também está o inferno. Conta a história de um caso verídico, ocorrido em 1839, quando 44 negros levados ilegalmente da África para Cuba se rebelam no navio e são capturados pelos americanos. Então tem início um drama de tribunal daqueles que você já viu melhores, incluindo o recente Advogado do Diabo. Os Estados Unidos devem decidir se cedem às pressões espanholas (e sulistas) e encaminham os 44 prisioneiros como escravos para Cuba, ou se os libertam para que possam voltar para casa.
Spielberg bem que tenta fazer com que o mártir seja Cinque, um dos amotinados, mas os verdadeiros heróis acabam sendo o advogado Baldwin e o ex-presidente John Quincy Adams, ambos abolicionistas e brancos. Inclusive, há um discurso vergonhoso nesse sentido de orientar o público, como se talvez nós, os espectadores, pudéssemos não reparar que a intenção é retratar Cinque como herói. Tudo mastigadinho, mas não adianta. Cinque nem ao menos fala a "nossa" língua, o inglês.
É interessante como os americanos quase sempre escalam atores britânicos para retratarem seus ex-presidentes. Parecem querer dizer que os presidentes são pessoas honradas e finas demais para serem personificadas por um, digamos, Bill Pullman, de Independence Day. Em Amistad, Hopkins, que já foi Nixon, faz um John Quincy Adams cheio de maquiagem, e Nigel Hawthorne, outro inglês, é o presidente de plantão, Van Buren.
Quincy Adams, aliás, tem um discurso revelador no final, quando pergunta à Suprema Corte: "O que estamos fazendo aqui?" Certamente o espectador se identificará, mas aí já é tarde demais. O filme está quase no fim, apesar de constantemente dar a impressão de que não vai acabar nunca.
Há inúmeras cenas daquelas bonitas e emocionantes, que parecem ser tiradas de um imenso arquivo. Você já viu um monte delas. É uma fotografia padrão Oscar, com lindos clichês como homem-na-chuva-à-noite e barco-a-vela-com-sol-ao-fundo. Tudo, mas tudo mesmo, pontuado com uma música melosa de John Williams. Praticamente inexistem diálogos sem música de fundo. Deve ser para criar clima, o que de fato acontece. Um clima de tédio absoluto.
Não se pode afirmar com certeza que Amistad seja o pior filme de Spielberg, porque também consta em seu currículo besteiras como Hook - A Volta do Capitão Gancho. Mas o que dizer da cena em que um dos negros se converte ao Cristianismo olhando as gravuras da Bíblia? Quando ele olha para o céu, com um olhar repleto de esperança e lágrimas, só nos resta abrir os braços e fazer o mesmo, torcendo para que Spielberg volte a fazer filmes de qualidade - não este cinemão embaraçoso.