segunda-feira, 26 de novembro de 2001

O PAPELÃO DA CRÍTICA

Eu já venho querendo escrever isso faz tempo, muito antes do virulento e, perdoe-me dizer, insignificante ataque que recebi na semana passada. Não vou perder tempo respondendo a alguém que cita a "Veja" como referência principal ou que se descabela por eu ter falado mal de um caríssimo filminho infantil que precisa de tudo, menos de defensores. Para este senhor, meu artigo deveria haver-se baseado na parte técnica da super-produção, nos 900 músculos (nenhum no cérebro, imagino) de "Shrek". Não posso levar isso a sério. Só vou parafrasear o que o lascivo Kevin Spacey diz à adolescente em "Beleza Americana": "você gosta de... músculos?".
O que eu queria mencionar, como alguém que redige resenhas de filmes há três anos e meio e que aprecia o contato com seu minguado público, é o papel da crítica. E, para tanto, devo analisar o que aconteceu com o cinema. É até lugar-comum decretar que ele morreu. Mas que o conceito de "sétima-arte" está definitivamente enterrado, isso não resta dúvida. Hoje, e já faz umas duas décadas, o cinema é apenas um caça-níqueis, uma indústria de entretenimento que visa faturar bilhões de dólares com espectadores cuja idade média é de 12 anos. Existem pouquíssimas produções destinadas ao público adulto, e menos ainda ao público adulto pensante. Mais ou menos em dezembro, Hollywood lança uma dezena de filmes que, com sorte, possam ser considerados "adultos" o suficiente para serem indicados ao Oscar. Enquanto isso, o resto do mundo sofre com um esquema massacrante de divulgação que elimina a produção caseira (uma das raras exceções é a Índia).
Pessoalmente, não acho que filme tenha que fazer pensar, que tenha que passar alguma mensagem, que tenha que ser "cabeça" ou arrastado. Se o cinema é entretenimento, que entretenha, ora. Mas aí vai a pergunta: quantas películas cumprem este nobre objetivo? E não cansa assistir a montanhas de filmes absolutamente iguais? É isso mesmo que queremos – um filme que fica um fim de semana em cartaz, some, e depois, quando sai em vídeo, não nos lembramos se já o vimos ou não?
Minha ídola é a Pauline Kael, que foi crítica do "New Yorker" por décadas a fio, e, quando se aposentou, no começo dos anos 90, declarou que a maior vantagem de parar de trabalhar era "nunca mais ter que ver um filme do Oliver Stone". Ela era brilhante e conseguia dissecar o cinema como ninguém. Em um dos livros que escreveu, ela conta que, nos anos 70, as pessoas iam até ela e diziam, com entusiasmo: "Puxa! Você é crítica de cinema?! Você assiste a todos aqueles filmes?!". Já na década de 80, com a sétima-arte em pleno declínio, as pessoas mudavam o tom: "Você é crítica de cinema? Você tem que assistir a todos aqueles filmes?".
E isso que a Pauline teve a sorte de discutir clássicos. Ela ainda pegou a fase de "2001", de "Apocalipse Now", de "Taxi Driver", de "Caçadores da Arca Perdida", de filmes com aquilo que a "Cahiers du Cinema" chamava de filmes de auteur. Hoje, nem se eu entendesse de arte como a Pauline, eu iria tentar imitá-la. Sobre o que eu iria escrever, se analisasse uma produção atual seriamente? Sobre o busto postiço da Angelina Jolie? Ou sobre a perfeição tecnológica das bolhinhas que aparecem n’água quando o Shrek solta um pum?
O cinema mudou, e é natural que a crítica cinematográfica mude também. Não posso ser sisuda comentando algo puramente mercadológico. O que é crítica atualmente? Os artigos dos analistas consagrados mais parecem press releases. Eles se limitam a resumir a estória, geralmente elogiando-a. Não há sequer opinião nos jornais ou revistas. Todos tratam de ser os "idiotas da objetividade" (dos quais falava Nelson Rodrigues), esforçando-se em agradar a unanimidade. Eu leio críticas de cinema. Se elas me influenciam na decisão de ver um filme? É lógico que não! Aliás, prefiro lê-las depois do filme, só pra comparar opiniões. E nunca tenho chiliques se a opinião do jornalista é diferente da minha, pois sei que é apenas isso: uma opinião. Não existe certo ou errado. Não dá pra pôr um xis na alternativa correta. Quando a crítica se leva demasiadamente a sério, ela deixa de cumprir seu papel, e transforma-se em papelão.
Talvez, e apenas talvez, um crítico se distinga ligeiramente do espectador comum porque 1) consegue expressar sua opinião (a maioria das pessoas só sabe balbuciar "gostei" ou "não gostei" quando lhe perguntam sua opinião sobre qualquer coisa); 2) teoricamente, viu mais filmes, leu mais, e conhece mais a história do cinema que o cidadão normal (o que, infelizmente, muitas vezes não ajuda em nada); e 3) recebe o ingresso grátis (eu só entrei neste seleto clube este ano).
Portanto, eu optei por adotar um estilo – alguns vão precisar procurar a palavra no dicionário, não tem problema, eu aguardo, é na letra "e", tá? Escrevo em primeira pessoa, sou 100% subjetiva e honesta, incluo a reação da platéia, procuro ser divertida. E, acima de tudo, despretensiosa. Não tenho a menor intenção de persuadir alguém a não ir ao cinema. Pelo contrário, quero mais é que o público aumente, que as pessoas saiam de casa e lotem as salas, mesmo que seja para ver filme ruim. Sou uma otimista, e acredito que, algum dia, os filmes melhorem. E não desejo que as salas se encontrem às moscas quando isso acontecer. Não subestimo a inteligência dos meus escassos leitores; creio que eles têm o direito e a habilidade de julgarem por si próprios. Fico feliz ao receber mensagens como "não gosto de cinema..." e "não concordo com você, mas gosto do que você escreve". Minhas críticas são mais crônicas do que críticas; sou mais cinéfila do que crítica.
Honestamente, eu poderia, sem grande esforço, imitar os outros críticos e redigir verdadeiros tratados sobre filmes sem nenhuma importância e me zangar quando uma aventureira (sem diploma de jornalista, ó céus!) zombasse de assuntos que só especialistas pretensiosos devem explicar. Mas, se eu fizesse isso, quem me leria?

Nenhum comentário: