terça-feira, 27 de novembro de 2001

CRÍTICA: AMNÉSIA / Sem cair no esquecimento

São tão poucos os filmes bons este ano que “Amnésia” me parece o melhor que vi até agora, e já estamos em outubro. Tem suas falhas, lógico, e não é para todos os públicos. Entretanto, ele é originalíssimo, faz pensar, é inteligente e não segue a idiotização do cinema atual. Um oásis, um colírio.

Me apaixonei pela história desde a cena inaugural, que mostra uma foto descolorindo até desaparecer. Levei uns segundos pra descobrir que era de trás pra frente. Primeiro a foto pronta, depois seu sumiço progressivo. Apenas nesta seqüência tudo é literalmente ao contrário. Ficaria cansativo se fosse assim o resto do tempo. Mas a trama é contada do fim ao começo. Logo, logo, já sabemos como o filme acaba. Sabemos mesmo?

Um moço presencia sua mulher ser estuprada e morta. Ele passará sua existência procurando o assassino para vingá-la. Só que há um detalhezinho. Na ocasião, ele bate a cabeça e adquire uma deficiência estranha: de quinze em quinze minutos, ele se esquece do que aconteceu nos últimos quinze minutos. Mais ou menos a atitude que os brasileiros adotam em relação a seus políticos corruptos. Aliás, ele não se recorda de nada após o crime. Ele sabe quem é e seu objetivo, sem ter a mínima idéia do culpado. Suas pistas se resumem a tatuagens pelo corpo, fotos e anotações das mais banais, como “não atenda o telefone”. Ele não é ninguém sem papel e caneta para mementos. Ele é o oposto de Funes, o Memorioso, a imortal criação de Borges, que não consegue apagar nada de sua memória.

Há uma sub-trama igualmente instigante, de uma investigação de seguros para avaliar se indeniza um homem que diz estar sofrendo deste mal. Estará ele mentindo? Ele é mesmo incapaz de recuperar a memória? Até sua esposa desconfia dele, com trágicas conseqüências.

Como se nota, roteiro é o que não falta em “Amnésia”. Às vezes há detalhes demais, e a parte do meio torna-se um pouco confusa, desnecessária até. Sei que é heresia comentar isso, mas tomara que um dia lancem a “versão do produtor”, com o filme reestruturado em ordem cronológica, para que a gente possa entendê-lo melhor. Talvez esta seja a frustração – o fato de existirem várias pistas vazias e passagens mal explicadas. Porém, será que precisamos da compreensão tintim por tintim? Não dá pra interpretar e adivinhar aquilo que não está tão claro? Hollywood nos acostumou a querer tudo mastigadinho.

Guy Pearce está perfeito como o protagonista desmemoriado, melhor ainda do que em “Los Angeles, Cidade Proibida”. E Joe Pantoliano, o traidor de “Matrix”, é o vilão ideal, com seu sorriso aberto e falso. Tem mais “Matrix” no elenco: Carrie-Anne Moss, que entusiasma, apesar de seu personagem não ser tão saboroso. Este é, claramente, um filme de script.

E é um script bem trabalhado, que poderia inclusive ser enxugado aqui e ali, sem perder suas nuances. Há questões pertinentes. Carrie-Anne quer saber se vale a pena a vingança, se nosso herói não se recordará dela em minutos. “Talvez eu tire uma foto”, ele diz. Ele pergunta à esposa porque ela lê o mesmo livro tantas vezes, se a graça está em surpreender-se com o final. É a indagação que o espectador se faz aqui. E a resposta é que “Amnésia” é o tipo de suspense que dá vontade de assistir mais de uma vez. Não sei quem afirmou que “saber esquecer o mal é também ter memória”. Ou seja, nosso protagonista é definitivamente um amnésico.

A gente fica pensando no que faria no lugar do narrador. Imagina não se lembrar de ninguém, não conhecer nada, não poder ver um filme porque, cedo ou tarde, você não saberá o que acabou de ocorrer. Não que isto seja um empecilho nas produções de hoje, que podem ser vistas com os olhos fechados e o cérebro em off...

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