sexta-feira, 31 de outubro de 2008

LEMBRANÇAS DO MEU HALLOWEEN

A Morte lhe Cai Bem: Eu e Grasi, num Halloween de uns seis anos atrás.

Fiquei chateada quando, ano passado, nos EUA, não pude ver um legítimo Halloween in loco. Bem naquela noite eu tava viajando de avião de Washington DC de volta pra Detroit, e perdi as fantasias que os filhos do Tony (um ótimo amigo, brasileiro, que mora lá) iam desfilar, indo de porta em porta no subúrbio onde moravam, gritando "Trick or treat" ("travessuras ou gostosuras"). Bom, pelo menos naquele dia vimos no metrô um grupo de jovens vestidos de super-heróis.
Ah, eles não têm Carnaval, gente, então dêem um desconto (que eu saiba, só Nova Orleans tem uma espécie de carnaval).

Deixa eu ver a que mais eu relaciono o Dia das Bruxas... Bom, em primeiro lugar, sempre a ET, na cena em que o nosso adorado extraterrestre se veste de fantasminha e vai atrás de um garoto fantasiado de alguém que acabou de levar uma facada na cabeça, querendo curá-lo. Fofo. Veja a adorável sequência aí em cima (desafio você a não chorar).
Em segundo, a todas as festas que eu ajudava a organizar quando era coordenadora de uma escola de inglês. A melhor nossa, que veio mais gente, foi uma em que os adolescentes ficaram vendo um vídeo de Faces da Morte. Como teen gosta dessas coisas! Tá, mas teve outros passatempos, como jogar ping-pong. Eu sempre me vestia de bruxa, porque era o mais simples. Lembro de tentar voar e quase fazer xixi nas calças de tanto rir com a minha amiga Catia (que era gerente da escola). Felizmente tenho uma foto pra provar, tirada na hora.Lolinha alçando vôo.

Lembro da Grasi, um amor de secretária, que tentava me dar lições de postura (aquelas em que se anda com um livro na cabeça), e como ela se fantasiava de diabinha. E como todos os homens, maridão incluso, não conseguiam tirar os olhos da diabinha, mas precisavam pelo menos fingir, manter as aparências. E como o pessoal se vingava de qualquer coisa que eu tinha aprontado durante o semestre na hora de me maquiar. Ai, ai. Aquele Halloween em particular foi muito divertido. Pena que as crianças incendiaram a escola. É sério. Foi sem querer, lógico. Alguma abóbora com vela dentro deve ter sido chutada, e a vela pegou na cortina, e felizmente o fogo ficou restrito a uma só sala. No ano seguinte, nada de velas, só lanternas.
Não lembro se a gente deixava todo ano ou só às vezes que os próprios alunos decorassem as salas. Tinha a organização de um concurso pra escolher a sala mais legal. E eles se empenhavam de verdade. Não era só caveirinha na parede. Um grupo (adulto) bolou uma super casa mal-assombrada, onde você entrava num lugar escuro e era aterrorizado mesmo.
Aí tinha um professor americano, meio fanático religioso, que não queria permitir que sua sala fosse decorada porque achava Halloween desrespeitoso com as tradições cristãs. O pessoal que não aceita que se diga "Xô Satanás" ou "vai pro inferno" realmente se aborrece com essa comemoração. Eu não sabia disso. Desnecessário dizer que, depois que descobri essa birra, o Halloween subiu no meu conceito (o mesmo aconteceu com Harry Potter quando eu soube que centenas de organizações da direita-cristã americana querem queimar os livros e filmes numa fogueira). Ah, a sala do tal professor problemático foi decorada.
Lembro também do meu ex-editor no jornal que, dez anos atrás, já ficava possesso com a invasão do Halloween na cultura brasileira. Essa maldita influência americana, ele vociferava. Eu achava que essa influência ficaria restrita às escolas de inglês. Mas como aluno de escola de inglês é aluno de escola particular, o costume rapidamente tomou toda a classe média. E agora a gente já vê Halloween comemorado em escolas públicas. Enfim... A gente é influenciada pelos americanos de tantas formas. Se todas fossem tão inocentes quanto o Halloween, eu não me incomodaria.
Vocês podem ver que não tenho bem uma opinião formada sobre o Dia das Bruxas ser celebrado aqui. Mas tenho boas memórias disso na escola. Por outro lado, não sinto nenhuma saudade de ver a Grasi de diabinha. Brincadeirinha, Grasi! Você sabe que eu te adoro.

UM FILME B EXISTENCIAL DO CRONENBERG

Simulações da vida são mais fascinantes que a vida real?

Existenz (1999) é mais um filme muito estranho do David Cronenberg, que acho que amadureceu nos seus últimos dois trabalhos, os ótimos Marcas da Violência e Senhores do Crime. Outro que havia perdido desse diretor canadense e vi em dvd foi Spider (2002), com o Ralph Fiennes (gostei bastante). Não entendi muito bem o que acontece em Existenz, e acho que não há respostas concretas. Se você não viu o filme, deveria vê-lo. Em linhas muito gerais, é sobre uma designer de videogames (feita pela Jennifer Jason Leigh, de Noites Violentas no Brooklyn) que foge com seu relações públicas, o Jude Law (Perto Demais), de montes de pessoas que querem matá-la. O jogo está dentro de um jogo que está dentro de outro jogo. Mas é uma viagem, e um prato cheio pra debates existenciais e pós-modernos. Deve haver uma dezena de teses escritas sobre ele. Infelizmente, não entendo nada de videogames, e o último que joguei foi um Atari (nisso eu já revelo a minha idade). Mas adoro quando a Jennifer e o Jude “acordam” no quarto, e ela diz pra ele: “Você está viciado. Sua vida aqui é chata, não acontece nada. E lá no jogo é cheia de ação”. E é verdade. Posso compreender por que montes de adolescentes não queiram se desgrudar dos seus joysticks (isso existe ainda?), onde são super-heróis. Mas a gente não precisa ficar só no âmbito dos games. O cinema é o quê, se não um universo alternativo? Lá podemos viver muitas histórias esquisitas que jamais experimentaríamos na nossa vida real. Quer dizer, quantas vezes você já viu alguém atirar noutra pessoa? Com sorte, nenhuma. Ou quantas vezes você viu uma mulher como a Sharon Stone no dia a dia? É uma fantasia atrás da outra. Isso me lembra os filminhos que são passados à população drogada com Soma em Admirável Mundo Novo (venho citando muito esse livro ultimamente. É que eu o amo de paixão). Enquanto a platéia vibra, o selvagem (a única voz discordante no livro) reclama da violência e do sexo nesses filminhos. Ahn, parece familiar? Outro dia li uma pesquisa entre americanos. Metade deles diz que os filmes britânicos seriam melhores se tivessem mais explosões. Imagino que dessa forma não seriam tão representativos da nossa realidade monótona.

Muitas das coisas que o Cronenberg faz são absolutamente asquerosas. A Mosca e Scannners ainda são meio mainstream (apesar da gente não ver em muitos filmes de Hollywood um carinha guardar num vidro no armarinho do banheiro seu pênis que caiu – o dele, leitor, não precisa checar!). Mas Videodrome e Naked Lunch eu acho difíceis de assistir, com o James Woods tocando uma fita de vídeo em seu estômago, e com uma barata gigante falando pelo bumbum, respectivamente. Existenz certamente entra nessa categoria de coisas asquerosas. Mas a história é muito original, então a gente perdoa. Agora, não gostaria de ver de novo todas as alusões sexuais, como um buraco nas costas, os anfíbios sendo comidos, ou mesmo as armas que atiram dentes. Acho o Cronenberg meio doente às vezes. Mas às vezes um doente genial.

Veja o trailer aqui. E, se tiver estômago, a inventiva cena do restaurante (aí embaixo). Típica do Cronenberg! Sabe quando em Gêmeos o Jeremy Irons, que faz um ginecologista, inventa instrumentos para "examinar" suas pacientes? Em Existenz o Jude Law monta uma arma com sobras de uma comida suspeita.


quinta-feira, 30 de outubro de 2008

GUEST POST: MULHERES SOZINHAS E O PÃO NOSSO DE CADA DIA

Num outro post, a querida Tina Lopes, que tem um blog interessantíssimo, fez um comentário que me fez refletir. Ela contou por cima que teve que aturar um monte de homem abusado quando foi "dona" de uma padaria (junto com a sua mãe), no bairro Pilarzinho, em Curitiba. Eu nunca tinha pensado nisso de como atendentes em qualquer negócio devem ter que aguentar cantadas e grosserias o dia todo. No meu breve período numa locadora de vídeo, não me recordo de nenhuma ocasião constrangedora. Então pedi pra Tina escrever um guest post sobre a sua experiência. Esse relato também me deu o que pensar. Lembrei do que li recentemente - de que mulheres se juntam a homens para que estes as protejam de outros homens. Lembrei que, toda vez que o maridão viaja (ele joga torneios de xadrez em outras cidades), a gente não fala pra ninguém que há uma mulher sozinha. Mas também lembrei de como eu era descuidada pra essas coisas. Quando me mudei pra Joinville, quinze anos atrás, o hoje maridão, então namoradão, ainda não tinha certeza se queria sair de São Paulo e morar comigo. Portanto, fiquei alguns meses sozinha (com o maridão vindo me visitar constantemente). Até hoje a vizinhança fala (mal) de uma moça que ousou ser independente e morar só. Porque isso nunca havia acontecido, nem aconteceu novamente. Mas eu não tinha medo. Mandei colocar grades nas janelas, lógico, porque todas as casas tinham. Só que não passou pela minha cabeça que eu corria perigo, já que uma mulher sozinha é vista como disponível, vulnerável, presa fácil. Eu simplesmente ignorava a sociedade que me via como uma alienígena (e, felizmente, sobrevivi). Mas nem sempre ignorar o preconceito é possível, como narra a Tina.

A Lola sugeriu que eu contasse minha breve experiência de comerciante – filha da dona da padaria, balconista, caixa e segurança – de padaria. Já relatei várias histórias da Pani no meu blog anterior (que num momento de desamparo, carência e fúria, deletei). Mas a Lola me pede que conte a história do ponto de vista que sempre evitei, o da mulher atrás do balcão. Ali ficamos expostas a cantadas inócuas, outras perigosas, falta de respeito, assédio e até violência mesmo.
Bem, a Pani ficava num bairro pobre. O negócio era originalmente do meu pai. Eu, com 19 anos e minha irmã, com 14, estudávamos de manhã e atendíamos no balcão à tarde; minha mãe, professora, trabalhava na Pani de manhã e dava aula à tarde na escola estadual do bairro. Só meu pai ficava lá o dia todo. Mas isso mudou logo, porque o casal se separou, meu pai saiu de casa e ficamos as três mulheres na Pani.
Daí muita coisa mudou. As mulheres do bairro, muito pobres, iam lá bater papo com minha mãe, uma “formadora de opinião” porque era professora e recém-separada. Um baita status revolucionário.
Já os homens passaram a nos olhar com outros olhos. Nunca houve um assédio sexual daqueles feios, beirando à denúncia e escândalo – mesmo porque todo mundo (do mundo masculino, digo) achava que meu pai ia voltar – mas passou a haver um ar de desrespeito. Representantes de vendas que se encostavam no balcão, languidamente, tentando forçar intimidade. Davam brindes que antes não existiam. Tentavam nos passar pra trás, também, nos pequenos negócios.
Mas o maior incômodo estava entre os clientes. Infelizmente, quanto menor o grau de escolaridade, maior a grosseria. Havia mais assédio moral do que sexual, que me lembre. Do tipo “você não sabe fazer contas”; “cadê seu pai pra resolver isso?”; “cadê o dono?” pra baixo. Já os poucos com alguma grana esbanjavam pra impressionar.
Resultado. Éramos duras com os homens; a ordem da minha mãe era: mãos limpas e cara fechada. Qualquer sinal de grosseria tinha revide imediato. Minha irmã e eu raramente ficávamos sozinhas ao balcão. Esqueci de contar que morávamos nos fundos da Pani. Enquanto uma entrava pra comer, tomar banho, ver TV, outras duas ficavam na frente, no balcão.
Lembro de um senhor que vivia bêbado. Ele ia diariamente à Pani pedir dez pães e, deliberadamente, nos tratar mal. Era o seu momento de desopilar o fígado, imagino. Derrubava coisas no chão pra nos fazer limpar, jogava as moedas de qualquer jeito, e todo santo dia, todo santo dia, perguntava do meu pai. Em troca eu era muito, muito estúpida com esse senhor.
Um dia ele apareceu, depois da missa (a igreja ficava a poucas quadras), com um frango assado daqueles de televisão de cachorro (comprado no mercado concorrente, que vendia pão) numa sacolinha de plástico. Pediu os dez pães. A Pani cheia, depois da missa de domingo, e ele reclamando que os pães estavam escuros demais. Ou claros demais, sei lá. Bem alto, pra todos os clientes ouvirem. Na hora de pagar, se enroscou todo com a sacola do frango e não conseguia se desvencilhar, foi perdendo as moedas, derrubando tudo, xingando, falando palavrões, reclamando dos pães. Aí vem e estica o braço por cima do balcão e me ordena: “arruma essa sacola aí”.
Eu, pegar no braço nojento, suado, do velho bêbado? Respondi na lata: “o senhor que se arrume, leve esses pães, não precisa pagar, só saia daqui e pare de incomodar. Eu não tenho que encostar no senhor, fazer nada pelo senhor, e tenho certeza de que se meu pai estivesse aqui, o senhor ia era estar se desculpando por atrapalhar todo mundo. Tá pensando que porque aqui só tem mulher, que a gente vai agüentar desaforo?”
Não sei se consegui explicar mesmo o bizarro da cena. O homem e seu frango assado, unidos por alças de plástico.
Bem, passamos por várias experiências chatas. Tentativas de assalto (foram 3 ou 4), uma briga de porrada – entre homens – dentro da Pani (nada a ver conosco, mas eu levei um soco depois de espantar os brigões a vassouradas), e finalmente, a falência inevitável depois do Plano Collor. Mas a lembrança que ainda me chateia é daquele velho me dando ordens. That's all, folks.

Quer ler outros guest posts? Cavaca explica como são as gorjetas em Portugal e narra alguns "causos", Cris conta como escapou da morte quando foi anoréxica, Patricia ri da cara das dietas, e Vitor fala como foi ser garçom num hotel cheio de celebridades no Havaí. Se você tiver algo legal pra contar, as portas do meu bloguinho estão abertas.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

CLÁSSICOS: TUBARÃO / Tubarão ensina xerife a ser homem

Em Tubarão, o pânico é mais pelos homens estarem perdendo poder.

A partir desta semana, vou passar a comentar com vocês alguns clássicos do cinema americano sob a ótica de um livro que ando lendo e relendo: Camera Politica: The Politics and Ideology of Contemporay Hollywood Film, de Michael Ryan e Douglas Kellner. O livro já tem vinte anos mas, pra mim, não está datado e ainda é uma aula de história. Foi uma ótima professora minha lá da UFSC que perguntou se eu não queria dar uma olhada. Na hora, eu tinha que folheá-lo rapidamente pra decidir se iria ficar com o livro por um tempinho ou não (é que tem tanta coisa urgente pra ler num doutorado...). Fui direto numa das várias fotos com legendas, e a que me ganhou definitivamente foi uma sobre Tubarão que diz: A sedução distrai o patriarca de seus deveres... ...e uma criança vira papa de tubarão.
(Quer dizer, isso na minha tradução mais do que livre. No original é “Seduction distracts the patriarch from his duties, and a child is eaten”). Eu nunca tinha pensado em Jaws (1975) desta forma. Okay, claro que eu havia me dado conta que é uma fantasia absolutamente masculina sobre male bonding (a amizade entre os homens, que neste sociedade é considerada a amizade realmente verdadeira, já que aquela entre mulheres - reza a cartilha machista - sempre esbarra na competição). Mas no livro há várias análises que eu não tinha nem chegado perto de considerar. E não apenas sobre Tubarão, mas sobre vários clássicos americanos dos anos 70 e 80. Claro que é uma visão marxista e feminista do negócio. Os conservadores vão ver o mesmo filme sob um ângulo totalmente diferente. Por exemplo, pra muita gente de direita, Apocalypse Now é um inferno - um delírio de um cineasta de esquerda sobre o fracasso americano no Vietnã. Pra Camera Politica, ele é um filme conservador sobre a guerra, na mesma linha de O Franco Atirador, e representante do conservadorismo que tomara os EUA no final dos anos 70 (e que em seguida levaria Reagan ao poder por oito longos anos). Mas outro dia falo de Apocalypse. Agora quero falar de Jaws.
Mas não imediatamente. Antes, outra coisa: acho que nas minhas críticas (que prefiro chamar de crônicas) de cinema eu sou bastante política, e minha visão é sempre feminista e de esquerda. Mas Camera Política faz isso num outro nível, muito mais sério e acadêmico. Às vezes é até chato de ler, porque a linguagem se enrola, se bem que quase sempre é fascinante. Ah sim, só porque somos apresentados a uma nova visão não quer dizer que o filme seja ruim, ou que não devemos mais gostar dele. Não é uma maravilha ver um filme que já vimos tantas vezes, e que pensamos já conhecer de cor e salteado, e descobrir algo novo? É assim que me sinto lendo Camera.
Em Jaws, o tubarão é fálico - isso já dá pra ver pela capa - mas, de acordo com Ryan e Kellner, ele simboliza menos o pênis e mais “um sinal do que dá errado quando os homens não cumprem seu dever de liderança patriarcal”. O xerife Brody (interpretado por Roy Scheider) é fraco. A comunidade da cidade, movida pela ganância, manda nele. E sua mulher também. Ela quer domá-lo, tornar o seu homem menos macho e mais doméstico. As mulheres, aliás, são tão péssima influência em Tubarão que o terror já começa com uma moça seduzindo um rapaz. Por sua sexualidade independente, ela imediatamente será punida, indo parar, nua, no estômago de um bicho enorme e feroz.Olhem só o que Camera percebe. A mocinha corre em direção ao mar, jogando suas roupas pelo caminho. O livro aponta que as estacas da cerca vão ficando cada vez mais esparsas, à medida que a mulher avança.Isso significa que ela está deixando pra trás o poder patriarcal, que restringe e controla sua sexualidade (eu acho essa análise o máximo, e me pergunto: por que não pensei nisso antes?). Porém, numa das primeiras sequências em que vemos a família de Brody, as estacas estão todas no lugar, bonitinhas, onde devem estar. Mulher e filho estão do lado de dentro da cerca, protegidos, enquanto o xerife, que representa o patriarcado, está fora. Além do mais, o foco está justamente na palavra "polícia, bem no carro do chefão.Brody tenta prestar atenção na praia que os manda-chuvas da cidade insistem em manter aberta, mesmo com um tubarão à solta. É bem quando sua mulher desvia sua atenção que uma criança é atacada. Isso não pode continuar assim. O fraco e “afeminado” Brody terá que partir para um lugar com dois machos, longe de qualquer influência feminina, para aprender a ser homem. Isso se dará através de rituais, inclusive rituais de violência. Numa das cenas, quando os dois machos já embebedados comparam tatuagens, Brody olha pra dentro de sua calça e não encontra nada. Mais adiante, Brody tenta usar o rádio para, em mais um momento de fraqueza, se comunicar com sua casa. O que faz o alpha male (o super macho, interpretado por Robert Shaw)? Ele pega um bastão de beisebol e destrói o rádio, literalmente rompendo o cordão umbilical que ainda une Brody com a domesticidade que sua mulher deseja pra ele.Agora o xerife está pronto para resolver a crise - não apenas a do tubarão que aterroriza os banhistas, mas também a do poder patriarcal. Esse poder passava por uma enorme crise nos anos 70 por causa das malditas feministas, que exigiam direitos iguais para as mulheres, desestabilizando a família e, assim, todo o status quo. Se Spielberg tinha qualquer um desses conceitos em mente quando fez Jaws? É bem provável que não, mas isso importa? Hoje em dia recepção (como uma obra é recebida e interpretada pelo público) é muito mais relevante que intenção. Ou seja, Tubarão não é mais do Spielberg. Agora é nosso.

Bônus: veja aqui uma paródia em desenho animado de Tubarão em 30 segundos. Muito boa.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

LIBERDADE, LIBERDADE, ABRE AS ASAS SOBRE NÓS

Meu leitor João Neto, assumidamente de direita, escreveu ontem este comentário no meu post sobre eu ser forçada a ser "do lar". Como é tudo longo demais, vou responder aqui. Primeiro, o comentário dele, um pouquinho editado:"Eu acho que a gente estuda para aprender e produzir e dar retorno à sociedade com o que aprendemos com esse estudo. Sinceramente eu não entendo essa de eterno estudante. Eu já tive alguns amigos assim. Você tem quarenta anos e ainda é estudante? Não tá na hora de trabalhar? Por isso seu blog é sempre excelentemente atualizado. Seu marido é desempregado? Como assim? Isso é o retrato da esquerda. Plano de saúde de graça, transporte de graça, educação de graça. Mas quem paga? Quem trabalha e quem produz. Você [...nem pode pagar o aluguel de um carro], e se diz de classe média? Que classe média é essa? A classe média trabalha e paga os desmandos desse país, dessa esquerda que distribui o que não é dela. Classe média não vive de bolsa de estudos para estudar eternamente, pelo contrario, paga estudo para seu filho para não depender da caridade insolente desse governo obtuso, e ainda banca estudo de quem só estuda. Se você fosse 'do lar' seria mil vezes mais digna do que uma doutora sem profissão, ou seja, sem contribuir para a sociedade. [...] Minha mãe foi um dona de casa, ou seja, 'do lar', e eu tenho certeza que ela era muito, mas muito mais realizada que você! Não insulte essas mulheres com suas idéias preconceituosas! Ser 'do lar' pode, e na maioria das vezes é, tudo o que uma mulher quer, para criar seus filhos e ser feliz. Se você tivesse filhos saberia disso. [...] A direta faz, a esquerda implora e tenta distribuir o que não é dela. Produza! Viva e deixe viver!"

Bom, João, seu comentário é tipicamente de direita. Impressionante como vocês são previsíveis! Olha, eu também sou um clichê. Nós de esquerda também somos previsíveis. E depois vem gente falar que não existe mais diferença entre esquerda e direita...
Por que seu comentário é de direita? Pela insistência em “produzir”, em “ser útil”. E pelo que você acha que todas as mulheres querem, o que é altamente ofensivo a... bem, a todas as mulheres!
Se você acha que 6 anos de estudo é demais, então você tá dizendo que não deveriam existir mestres e doutores. Porque esse é o tempo que se leva pra fazer um mestrado (2 anos) e um doutorado (4 anos). E eu fico confusa: o capitalismo atual não prega que “nunca se deve parar de estudar”? As empresas não querem profissionais cada vez mais capacitados? Ah sim, mas capacitar-se pra trabalhar pruma empresa é uma coisa. Estudar por prazer é outra. Não tem utilidade.
Mas quem determina o que é útil ou não pra sociedade? Você? O governo? As empresas? Ué, se dependesse de gente como você, o meu curso, Literatura em Língua Inglesa, nem existiria. Porque eu não estou encontrando a cura pro câncer, certo? Nem estou construindo pontes pra carros, esses pilares ambulantes do capitalismo. Outros cursos que, se o critério fosse “produtividade” (medida em dinheiro), não existiriam, além de Letras: Filosofia e Sociologia. Psicologia, Jornalismo e Pedagogia pode? São úteis? Olha, na dúvida, melhor acabar com todas as ciências humanas e deixar só os cursos que produzem coisas concretas: Engenharia, Medicina, Arquitetura. Direito é importante também, pra defender a propriedade privada dos poucos que têm alguma propriedade, e pra mandar pra cadeia quem levantar um dedinho contra os poucos que têm propriedade. E depois o pessoal de extrema direita critica o socialismo, que não nos permite liberdade de opções... Se dependesse de você e do seu critério de produtividade, que opção eu teria?
Você, que é de direita, tem uma visão de ver as coisas. Eu, de esquerda, tenho outra. Eu nunca falaria de saúde e educação como algo “de graça”, porque pra mim são direitos de todo cidadão. Pra você, as pessoas deveriam pagar empresas privadas por esses direitos. E quem não tiver dinheiro pra pagar, azar! Como é nos EUA: é melhor que os 50 milhões de americanos sem plano de saúde não fiquem doentes, porque senão morrerão. E, se americano quiser cursar faculdade, melhor se endividar pro resto da vida (porque todas as universidades são pagas), ou servir numa das inúmeras guerras que eles promovem pra manter o sistema (aí o exército custeia os estudos), e torcer pra não levar um tiro. Incrível como esse mesmo país tão rico e poderoso, que despreza seus próprios cidadãos mais pobres, “menos úteis”, tem dinheiro pra gastar em guerras.
Sobre a parte que me toca, eu trabalho desde os 19 anos. Não estou trabalhando agora (aliás, faz 5,5 anos) porque cursei mestrado e estou terminando o doutorado, dois cursos puxados, que exigem muito tempo. O maridão está desempregado porque voltamos dos EUA em agosto, e sabíamos que iria ser difícil pra ele, que é professor de xadrez, encontrar um outro emprego ainda este semestre. Não estamos muito preocupados porque somos responsáveis, sempre gastamos menos que ganhamos, e temos dinheiro guardado pro nosso sustento. Quando eu terminar o doutorado, vou prestar concurso pra tentar ser professora em alguma universidade federal (hoje mesmo fiquei sabendo de três concursos: um em Marabá, PA, um em Garanhuns, PE, outro na região de Diamantina, MG - opa, será que essas cidades merecem ter universidades públicas? Ou só as capitais?). Mas, se o que estou cursando já é inútil, eu deveria também ser proibida de lecionar algo tão sem valor, não? Imagina, discutir Shakespeare com alguém nascido na terra do Lula! Como é que pode? Onde esse mundo vai parar?
Agora, mesmo que eu nunca tivesse trabalhado na vida, por que eu não poderia fazer uma pós aos 40 anos? E por que não poderia receber uma bolsa pra isso? Quem decide que eu não posso, você? Na Pós-Graduação em Inglês da UFSC, onde estudo, é assim: há mais ou menos umas oito bolsas de mestrado por ano, e umas quatro de doutorado. Todos passamos por um processo de seleção. No meu curso ninguém tem privilégios e não existe isso de panelinha. Eu tive a sorte (e, talvez, o talento? O esforço? Vocês de direita apreciam muito esses termos) de passar entre os primeiros, e recebi bolsa. Em contrapartida, quem tem bolsa deve se dedicar integralmente. Não pode trabalhar, e tem que fazer estágio-docência (ou seja, dividir um curso com o orientador/a). Se eu não terminar o doutorado, precisarei devolver ao governo todo o dinheiro investido em mim, com juros e correção monetária. É uma grande responsabilidade. Ah, sabe o que mais? Todos meus colegas da pós são de classe média também. O governo Lula, com sua política de cotas (que você certamente é contra), está tentando fazer com que pessoas com menos recursos também possam cursar universidades públicas. Por ora, é só classe média. Como eu.
Sobre a sua mãe ser mais ou menos realizada do que eu, eu não a conheço, e, lamento desapontá-lo, mas nem tudo na vida é uma competição. Não sei se é possível medir graus de realização pessoal. Só posso dizer que gosto muito da minha vida, e gostarei ainda mais quando terminar o doutorado (porque estou exausta). Não sou eu que estou insultando as mulheres. É você, ao proclamar que ser “do lar” é “tudo que uma mulher quer para criar seus filhos e ser feliz”. Que coisa, João! Falar isso em pleno século 21! Nós, feministas, defendemos o direito de escolha. Se uma mulher quiser ser dona de casa, maravilha. Se quiser trabalhar, ótimo. Se um homem quiser ser “do lar” enquanto a mulher trabalha, ótimo também. É isso que queremos: liberdade de escolha. Justamente o que você parece não querer.
E, já que estamos falando em liberdade, permita-me o direito de não ter filhos. E de não querer ter filhos. Afinal, da última vez que chequei, a gente ainda vivia num estado não-totalitário.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

BALANÇO DAS ELEIÇÕES 2008

Como eu adoro política e democracia, vou fazer um balancê.
Se a gente vê por cima o resultado das eleições, fica a impressão que o PT perdeu. Mas não é verdade. No primeiro turno ele foi o partido que mais conquistou capitais (seis). Tudo bem que nenhuma é capital importante, mas se a medição é essa, número de capitais, o PT ganhou. No segundo turno foi o partido que mais venceu a disputa, junto com o PMDB (oito vitórias cada). Em geral, o PT foi o partido que mais cresceu no país. Aumentou seu número de prefeitos em 36%. Não é pouca coisa. É a mesma porcentagem que o DEM (que só fez uma capital, São Paulo) encolheu.
Fico chateada com o resultado em várias capitais. São Paulo, óbvio, é uma delas. Mas era uma derrota anunciada. O voto anti-PT é muito forte, e a esquerda sempre tem problemas num segundo turno paulista (tanto na capital como no estado). O pessoal costuma esquecer, mas eu, com minha memória e corpitcho de elefante (adoro elefantes), lembro: a Erundina só ganhou a capital em 1988 porque na época não existia segundo turno. Ela fez 23% e foi eleita, e foi surpresa pra todo mundo. Quanto ela teria num segundo turno, se isso existisse então? 35%, no máximo? Pode apostar.
Em Porto Alegre era impossível ganhar também, porque o atual prefeito, Fogaça (PMDB), teve 40% já no primeiro turno. Faltava apenas 10% pra ele se reeleger. E no segundo turno todo mundo cresce, porque recebe apoios, porque eleitores de outros candidatos migram pra um dos dois finalistas. O único caso de “O Incrível Político que Encolheu” que eu me lembro na história foi o do Alckmin, na última eleição presidencial. Ele teve mais votos no primeiro turno que no segundo, um caso inédito (corrijam-me se eu estiver errada).
Se eu votasse em Floripa, teria que a
nular o voto, então torcia contra os dois. O mesmo, devo admitir, aconteceria se eu tivesse que votar nesse estado politicamente esquizofrênico que é o Rio. Ainda que eu admire o Gabeira como pessoa, o Partido Verde é mais do que insignificante: está se transformando num partido fisiológico, que apóia quem lhe oferecer mais vantagens, sem se preocupar com questões ideológicas. E o vice do Gabeira era do PSDB, pelamordedeus! Eu não teria como votar em alguém que tivesse esses apoios. Pra vocês terem uma idéia, uns dias atrás eu entrei, sem querer, num blog de extrema direita. É de um jornalista de Floripa que publicou livro sobre o nazismo e é membro do “O Sul é meu país” (movimento separatista asqueroso). Sacaram o nível? O cara imita o Reinaldo Azevedo e chama petistas de petralhas, além de mandar que abram fogo em cima da gente. Ou seja, evidentemente o nojentão é um fascista. Aí ele escreve que fica feliz porque, aparentemente, Kassab vai ganhar em SP e Gabeira no Rio. E eu penso: opa, Kassab e Gabeira na mesma frase? Sem exagero, um sujeito de extrema direita e eu não podemos concordar em nenhum ponto, exceto, talvez, alguma afirmação óbvia, tipo “Tá chovendo”. De resto, é como diz o Gershwin, “you like /puteitou/, I like /putato/”, sabe? E tem mais uma coisinha. Foi meio inegável que o Gabeira era o candidato dos ricos, e o Paes, dos pobres. Eu sempre fico com o pé atrás de votar em candidato dos ricos. A única vez que fiz isso foi quando fiz campanha pro Fernando Henrique Cardoso. Calma! Foi em 1985, pra prefeito de São Paulo, quando não havia segundo turno, então era ele ou o Jânio (o Jânio ganhou). E eu era uma criança, tinha 17 anos, e o FHC ainda não havia apodrecido. E mesmo assim eu me arrependo... Mas lembro até hoje que foi a única vez que ganhei alguma coisa pra fazer boca de urna (camiseta e sanduíche). Depois, todas as vezes que fiz boca de urna pro PT (e considera-se que boca de urna de uma militância aguerrida e altamente ideológica como a do PT conseguia aumentar entre 1% a 2% dos votos no dia da eleição - ou por que vocês acham que ela foi proibida?), eu tinha que comprar a camiseta. Ah, o maridão foi fiscal ontem, e recebeu um sanduíche e uma camiseta. Mas fiscal é diferente.
Por falar nesse assunto desagradável que é FHC, notaram que toda declaração que ele dá é contra o Lula? Ô velhinho ressentido! Ontem foi a vez d'ele dizer que apoio do Lula não significava vitória. Ué, precisa ser sociólogo pra constatar isso? Mas digamos que apoio do Lula vale mais que apoio do FHC, né? Anyway, pra mim, se eu tiver que apontar um só nome, o grande vitorioso desta eleição foi o Serra. Não só porque ele conseguiu fazer seu sucessor, um fantoche irrisório como o Kassab, mas principalmente porque ele enterrou o Alckmin, que ainda tinha esperança em disputar a presidência pelo PSDB em 2010. Aécio Neves também foi bem-sucedido em eleger seu candidato em Belo Horizonte, mas com o apoio do prefeito do PT, e perdendo no primeiro turno. Aposto que o Serra será o candidato que a Dilma terá que derrotar em 2010. Aécio é muito novo ainda, e Serra, que terá 69 anos na próxima eleição, seguramente estará concorrendo pela última vez (sou Dilma desde criancinha, ok?).Mas o que me deixou pulando de alegria foi a vitória do Carlito aqui em Joinville. Primeira vez na história que o PT ganha na maior cidade catarinense. Fiquei emocionada ao votar, derramei uma lagriminha, acariciei a urna eletrônica, e saí com um sorriso de orelha a orelha. A diferença não foi tão gigantesca como as pesquisas indicavam - 62 a 38%. Ainda assim é considerável. Tenho até explicação pra que candidato de direita sempre tenha mais votos nas urnas que declarados em pesquisa: é o eleitor enrustido, que tem vergonha de assumir em público que vai votar num candidato desses. É por isso, sério, que nos EUA as pesquisas sempre erram os votos pros republicanos. Nas urnas, eles sempre recebem mais. Por isso, se o Obama só está 5% na frente do McCain nas pesquisas, minha única palavra é ihhhhhhh...