segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

QUE 2013 SEJA UM ANO DE MAIS REVOLTA E MENOS ESTUPRO

Juro que queria terminar o ano com um post levinho e inconsequente, mas não vai dar. O assunto do momento no mundo é a revolta na Índia, e vocês já devem ter ouvido falar do caso. 
Vou resumir: no dia 16 de dezembro, em Nova Déli, uma estudante de medicina de 23 anos e seu amigo foram ao cinema, e pegaram um ônibus para voltar pra casa. Dentro do ônibus, durante uma hora, ela foi estuprada por seis  homens. Usaram uma barra de ferro para espancá-la e penetrar seu corpo, causando rompimento de vários órgãos. Também bateram no amigo, e jogaram os dois, nus, pra fora do ônibus em movimento. 
Durante duas semanas, internada em hospitais, a moça lutou por sua vida, mas não resistiu aos ferimentos e morreu neste final de semana. O clima de revolta começou em meados do mês, quando uma multidão de manifestantes foi às ruas exigir justiça e o fim da violência contra as mulheres. Na realidade, começou antes. Em julho, em outra cidade indiana, uma jovem foi cercada e hostilizada por 20 a 40 homens, que não a estupraram por pouco. A agressão foi filmada, e a inércia da polícia fez com que milhares de pessoas protestassem por toda a Índia.
Entre os países que configuram as maiores economias do mundo, os G-20, a Índia é considerada o pior lugar para as mulheres viverem (o Brasil ocupa a 11a colocação). Estatísticas apontam que, do total de 256 mil crimes violentos registrados na Índia em 2011, 228 mil foram contra mulheres. Esse tratamento de segunda classe dado ao sexo feminino transparece nos alarmantes números de infanticídios (“é uma menina” são as três palavras mais fatais do planeta, segundo um documentário) e nos casos de estupro, que só aumentam.
Ano passado foram mais de 24 mil casos registrados na Índia. Só 26% deles resultaram numa condenação. Como o estupro equivale a uma condenação moral da vítima (soa familiar?), indianas estupradas raramente conseguem casar, por exemplo. Assim, as denúncias de estupro são ínfimas. Só um em cada 50 casos de estupro é denunciado. Portanto, vamos multiplicar os 24 mil estupros na Índia no ano passado por 50. Dá 1,200,000 estupros por ano. E muitos desses estupros são coletivos.
A polícia indiana age como aquela de Nova York nos anos 1970, ou como a nossa antes das delegacias da mulher, ou como o candidato americano ao senado (que falou de “estupros legítimos”), ou como o policial canadense que fez a declaração que gerou a Marcha das Vadias (disse ele: “as mulheres devem evitar se vestir como vagabundas, para não se tornarem vítimas de ataques sexuais”). Certo. A polícia indiana reflete o senso comum, nada mais, nada menos. O problema é que uma parcela enorme da população depende desta mesma polícia para ter o mínimo de proteção.
Uma revista indiana gravou entrevistas com trinta investigadores em delegacias, e o que esses investigadores disseram é o mesmo que ouvimos todos os dias (os comentários publicados aqui em qualquer post sobre estupro não me deixam mentir): que a vítima mereceu, que ela provocou, que ela só quer ganhar dinheiro em cima da denúncia (“as vítimas reais de estupro, mulheres honestas, nunca teriam coragem de denunciar”, alegou um deles).
Outro caso chocante ocorrido semana passada foi o de uma indiana de 17 anos que se matou ingerindo veneno. Ela tentou denunciar o estupro coletivo que sofreu. E, em contrapartida, ouviu da polícia que deveria aceitar um acordo financeiro ou se casar com um dos estupradores. Depois do suicídio, os policiais responsáveis foram afastados. Vão afastar todos?
Diante de uma situação tão desoladora, faz todo sentido a iniciativa de Sampat Pal Devi, que fundou a Gulab Gang (gangue rosa-choque) em 2006. Hoje a gangue tem 20 mil participantes, incluindo homens, que andam com bastões para proteger mulheres de injustiças e abusos. A Gulab Gang, assim como os inúmeros protestos, ajudam a pressionar as autoridades.
O governo indiano está sentindo os protestos na pele. Foi só por causa desses protestos que seis acusados foram presos no caso do estupro coletivo no ônibus de Nova Déli. E o primeiro-ministro compareceu ao funeral. Agora o governo está prometendo medidas mais duras contra o estupro, e a divulgação de nomes de condenados por estupro. Esta é obviamente uma medida perigosa, já que pode causar linchamentos dos criminosos. Mas concordo com uma ativista indiana que diz que essa divulgação tiraria o foco da vítima (que sempre é culpada ou no mínimo suspeita em casos de estupro) e o direcionaria ao estuprador.
Vamos ver no que isso vai dar. A boa notícia disso tudo é que as indianas (e muitos indianos também) estão protestando a todo vapor. 2012, pelo jeito, será o ano em que uma grande parte da sociedade percebeu que não pode continuar assim. Pena que houve a necessidade de tantas mártires para se chegar a esta conclusão.
Se estupro de modo geral já tem muito mais a ver com violência do que com sexo, o que dizer de estupro coletivo, o chamado gang rape? Este é o tipo de estupro mais comum em guerras, e também entre gangues. Por que será? Será que homens em grupo sentem um desejo incontrolável de fazer sexo com as mulheres que aparecem em sua frente? Ou será que o estupro coletivo é um meio em que esse grupo de homens exerce sua masculinidade, provando ser másculo? É dessa forma que um homem prova prum grupo que ele não é a pior coisa que pode ser numa sociedade misógina –- em suma, que ele não é mulher. E nem gay. Ele atesta sua masculinidade liberando sua misoginia e estuprando uma mulher.
E, sim, fui informada do caso da jovem de 21 anos que no início do mês, em SP, se jogou do sétimo andar do seu prédio. Isso aconteceu uma semana depois de uma festa de final de ano no escritório de advocacia em que Viviane estagiava. Viviane chegou a dizer para a mãe que havia sido drogada e estuprada durante a festa. Só agora a polícia está investigando o caso. A firma de advocacia, uma das maiores do Brasil, lançou nota declarando que não se manifestará sobre o caso “em respeito à memória de Viviane”. Pra quem já acompanhou meio caso de estupro, essa nota parece dizer nas entrelinhas que a estagiária transou com um monte de caras numa festa porque quis. Daí o “respeito” em não falar sobre o caso (há reviravoltas no caso, e em março a polícia descartou estupro).
Hoje mesmo recebi um comentário no post sobre o estupro coletivo do grupo New Hit (tudo sic): “mesmo que esse laudo aponte a presenca de semem de um dos rapazes, como saber se nao foi um ato sexual consetido?. quer dizer agora toda mulher pode ir a delegacia e denunciar seus namorados e maridos por estupro para se vingarem de uma traicao ou rejeicao? que bagunça e essa?. Muitas vezes, nao todas, mas muitas, as proprias mulheres é que ficam flertando com o cara, se insinuando”. 
Como podemos ver, estupro e a punição para estupros não são graves problemas só na Índia. E se esses problemas fossem fruto de uma determinada polícia, de um determinado governo, não seria difícil resolvê-los. Bastaria trocar a polícia e o governo. Mas trocar toda uma sociedade é bem mais complicado.
Mas pode ter certeza que vamos continuar lutando em 2013.

domingo, 30 de dezembro de 2012

GUEST POST: FILHA E IRMÃ MAIS VELHA

A Bá mora em Porto Alegre e cursa publicidade. Acho que ela está sendo um pouco injusta com a irmã e com os pais. Mas, de fato, existem privilégios e desvantagens em ser a filha ou irmã mais velha (ou o filho/irmão). Creio que nunca tratamos deste assunto no blog. E eu sou a mais velha...

Queria compartilhar minha história com as demais leitorxs do blog, porque nunca li nada parecido com o que vivenciei, e acho impossível ser a única.
Sou de família de classe média alta, sempre ganhei todos os brinquedos, atenção e carinho que precisei. Fui filha única até os cinco anos. Até que ganhei uma irmã.
Um ano depois, meus pais se separaram. Eu e minha irmãzinha nenê, a Dô, continuamos morando com a minha mãe. Dô era bebê, ocupava muito a minha mãe/vó, enquanto meu pai vivia em suas funções de emprego, casa, e namoradas (sempre nos deu atenção, mas um final de semana sim, outro não). Eu tinha mais duas primas, também pequenas, o que consumia meus avós e tios. Resumindo: fiquei sozinha.
Sozinha, tinha que entender que meus pais tinham se separado. Que eu era a mais velha e tinha que dar o exemplo (frase que eu mais ouvi na vida). Quando minha irmã ficava gripada, eu não podia comer sorvete. Quando eu ficava, ela podia, porque ela era menor e eu tinha que entender. Ela ganhava tudo o que queria, nunca estava errada nas brigas, vivia me batendo com todo o tipo de objeto (escova de cabelo, caderno e afins), mas ai de mim se eu revidasse, porque eu era maior e tinha que cuidar dela. Eu, com sete anos, tinha que apanhar quieta, ficar sem sorvete, enquanto ela, quando com sete anos, era a rainha. Porque ela sempre será a mais nova e eu, a mais velha.
Assim fui crescendo, minha irmã também. Lembro de vários casos tensos na minha pré-adolescência, como por exemplo minhas amigas indo dormir lá em casa, querendo conversar, e eu tendo que aturar a minha irmã de 8 anos junto (sendo que nunca dividi quarto com ela), porque ela era menor e eu não podia excluí-la. Com o tempo, fui fazendo minhas escolhas religiosas e me tornei ateia. Já era bissexual e militante anti-homofobia desde os 14 anos.
Quando me percebi ateia, com 16 anos, entendi que não, não era culpa minha. Não era culpa minha que eu era "revoltada" com meus pais, que não suportava a minha irmã e discordava da minha mãe em quase tudo. Eu não estava errada em reclamar de falta de atenção e injustiça em casa e, principalmente, não era ciuminho. Meus pais foram injustos e abusivos, principalmente nos castigos (apanhei, fui castigada por coisas ínfimas, minha irmã jamais).
Um dia não pude mais me controlar e joguei tudo isso na cara da minha mãe, quando a Dô repetiu de ano e foi consolada por ela, enquanto eu quase fiquei em recuperação, mas passei sob a ameaça de não poder mais sair de casa a não ser pra ir pra escola. Porque a minha irmã tem "desvio de atenção", enquanto eu era só preguiçosa mesmo. Resposta da minha mãe: sou uma MIMADA sem LIMITES e ela e meu pai me mimaram muito. Sim, querida mãe, até os meus cinco anos eu fui mimada, mas os anos de repressão, cortes e excesso de limites com os quais fui punida por ter sido mimada anularam a existência de qualquer mimo na minha vida, obrigada.
Hoje em dia tenho 18 anos, sou considerada um desastre, já que sou gordinha, feminista, ateia, bissexual e inteligente, enquanto a pobre da Dô é magrinha, e ingênua, como minha mãe. Sim, eu terminei muito melhor que ela, mas ainda sim, todos os dias eu penso em como minha vida teria sido diferente, quantas das minhas três tentativas de suicídio não teriam existido se minha vida não tivesse mudado tão drasticamente aos 5/6 anos, quando eu era apenas uma criança, não a mais velha.

sábado, 29 de dezembro de 2012

GUEST POST: XINGADA NUM FÓRUM MACHISTA

De um machista "esclarecido" para outros da sua espécie: "Voltem, estragamos tudo"

Neste guest post, uma moça contará o tratamento que recebeu num fórum machista. Isso não é nenhuma novidade, claro. Uma pesquisa mostrou que uma pessoa com nick feminino tem 25 vezes mais chances de ser insultada que um usuário com nick masculino. E a gente sabe quais ofensas virão: ou algo referente à sexualidade da usuária, ou a sua aparência, ou as duas coisas. Não muda nunca.
Pelo teor que a autora do guest post, Miss Joker, descreve, pensei que fosse um fórum mascu. Mas, como tem humor (mascus não riem), e como a palavra broxar é mencionada (mascus não broxam, primeiro porque eles se consideram superheróis sem defeitos, e segundo porque, pra broxar, tem que fazer sexo), acho que não é. Tá mais pra um desses fóruns de channers, esses seres que habitam as profundezas da internet. E vários fóruns channers são o lixo misógino de sempre.
Uma usuária me contou que, durante um tempo, a palavra mulher era automaticamente trocada para depósito (de p*rra) nesses fóruns. Não sei se essa troca automática continua, mas todas as vezes que me enviam algum printscreen escabroso de um tópico channer, tá lá a palavra depósito. Aí eu faço a pergunta: é possível usar depósito pra se referir às mulheres e não ser misógino?
Bom, o que aconteceu com a Miss Joker acontece direto na internet. Aqui neste blog recebo dezenas de insultos por dia. Mil e uma montagens já foram feitas com fotos minhas colocadas aqui. Uma coisa que quem é ofendida precisa entender é que não é pessoal. Não faz diferença se você é uma miss brasil, se você já teve dúzias de namorados, ou se você tem a atividade sexual de uma monja enclausurada. Quem te xingar vai sempre te chamar de baranga e vadia. Não por algo que você fez ou deixou de fazer. Mas simplesmente porque você é mulher.
Ah sim, e qualquer mulher é vista como feminazi na internet. Mas vamos ao relato da Miss Joker.
  
Passei por uma situação de extrema misoginia em um fórum da internet e gostaria de compartilhar, como uma forma de elaborar o que aconteceu. Sempre participei de fóruns e nunca me ocorreu nada parecido.
Agora antes do natal, em uma página feminista, vi o printscreen de um post que um rapaz fez em um fórum. O cunho do post, é claro, era muito machista, e resolvi clicar no fórum para ver na íntegra o que os integrantes falavam. O título do tópico era "Achou bonitinha até que ela te 'broxou'".
Dentre os comentários havia coisas como "não gosto de mulher com tatuagem, mulher que fuma, mãe solteira, mulher que fala palavrão, mulher que assiste futebol", dentre uma série de coisas. Eu, sempre passional, me incomodei com a situação e me cadastrei no fórum com o nick "Miss Joker". Fiz um post bastante educado, dizendo que não concordava com o ponto de vista da maioria e o porquê. No exato momento em que postei, vários caras já vieram me mandar "mostrar a cara", porque eu deveria ser uma baranga horrorosa por estar postando aquilo.
Mais uma vez errei e postei a minha foto. Na verdade, nem sei se é um erro, porque acredito que todos temos o direito de mostrar quem somos, ainda mais porque não tenho nada a esconder. A opinião que dei era verdadeiramente minha, e não me envergonho dela.
Dentre os comentários que recebi depois que postei a foto, a maioria me tratou dessa forma:
"É essa a Miss Joker? Provavelmente acima do peso e future landwhale. Acho que 2/10 é o máximo que eu posso dar na nota."
"Po meu, vc nao é feia mas tambem nao é nada demais, e fica menos ainda com essa arrogancia, porem eu comeria voce, abrass"
"attention whore. next"
"Entrei com o paul na mão no perfil da loirinha, mas não achei as fotos de praia... ta loco viu, a onde esse mundo vai parar."
"eu comia até vestida de teletubie"
"Miss Joker não me entenda mal, mas sua cara de menina sapeca me fez ter uma duvida sobre seu comportamento. Por favor não leve a mal a pergunta, é a de caráter curiosidade mesmo, sem maldade. Me diga, quando voce chupa uma rola, voce a segura com as mãos ou só com a boca? Você olha pro cara enquanto chupa? Por favor me responda isso, sem rodeios."
"pode ate nao ser baranga, mas ta longe de ser bonita hahah"
"Nível da miss joker: 3 Litros de cerveja / pegava comia e saia fora / flw"
E como se não bastassem esses comentários, pegaram a minha foto e fizeram isso [a foto foi blurred para este post, mas na montagem feita pelos machistas, está normal]:
Fiquei muito indignada com essa situação, com a forma que uma mulher não pode se manisfetar. Qualquer coisa, qualquer palavra, dá nisso. "Mas você foi muito ingênua de ter ido postar num fórum machista. Podia ter dormido sem essa, você errou." Pode ser. Mas prefiro acreditar na hipótese que errados são eles, errado é o tratamento que eles oferecem, a forma como veem uma mulher e como lidam com ela. Prefiro acreditar que o certo seria eu poder manifestar minha opinião e receber respostas coerentes e de pessoas inteligentes.
Enfim, eu queria muito compartilhar essa experiência com vocês... e dizer que mais do que nunca senti o machismo na pele, e a partir de agora, vou dobrar a minha luta (que já existia) contra ele.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

SÍNDROME DO SAPATINHO DE CINDERELA

No magnífico episódio 22 da terceira temporada de Modern Family, a galera vai pra Disney. Antes da viagem, Jay chama a atenção de Gloria, e lhe pergunta se ela realmente deseja ir a um parque de diversões usando salto alto. Afinal, eles terão que andar um monte no parque! Gloria, ofendida, responde que os saltos não a impedem de caminhar, e que ficar linda exige sacrifício e vem em primeiro lugar.
Ao mesmo tempo, Cam e Mitch enfrentam graves problemas com a rebelde Lily, de 3 aninhos. Assim que soltam sua mão, ela sai correndo pra todo canto. O negócio é tão sério que eles colocam uma coleira nela, atraindo olhares de reprovação de todo mundo.
Pouco tempo depois, Gloria já não aguenta mais caminhar com os saltos, mas não quer se dar por vencida. Então Jay a presenteia com ridículos e enormes sapatos da Minnie. Eles são feios, mas macios e confortáveis, e Gloria não resiste. Ela pergunta: “Será que eles vem em outras cores?” Jay descobre que o que faz Gloria tão irritada às vezes é o sofrimento que os saltos altos lhe causam.
E Jay também tem uma ideia brilhante pra resolver o problema das fugas de Lily: ele lhe dá um par de sapatos com salto. Assim que a bela menina de 3 anos os põe nos pés, ela percebe que não consegue mais correr. Até pra andar tem dificuldade. Pronto! Cam e Mitch não precisam mais usar a coleira! Agora eles contam com um outro meio pra controlá-la. E, melhor ainda –- Lily não verá isso como controle. Ela gosta! Ela se sente mulher.
É como Caitlin Moran fala em seu bestseller Como Ser Mulher -- pelo jeito, pra nos sentirmos femininas, temos que usar salto alto. Moran nota uma peculiaridade: nos casamentos, todas as mulheres aparecem de sapato de salto, mas, assim que a festa esquenta, tiramos os sapatos (“a carne do pé escapando pelas beiradas do cetim apertado; dedos dos pés que ficam entorpecidos até dias depois”).
Moran faz uma lista dos sapatos que deixou de usar: “Prateado, de amarrar na canela, salto anabela, Kurt Geiger. Eu usei: uma vez, em uma cerimônia de premiação. Recebi três elogios -– OBA! -–, mas também observei que com eles eu andava de um jeito menos feminino e confiante que a dama Edna Everage, de 82 anos, que também estava no evento”.
Moran diz que todas as mulheres têm estoques de sapato de salto alto que nunca usaram ou só usaram uma ou duas vezes, pra nunca mais. Ela explica:

“Por que esses sapatos não são usados? Moças, vou deixar tudo bem claro. Vou dizer uma coisa que fui percebendo gradativamente ao longo de treze anos e que todas nós já percebemos, ainda que em segredo, na primeira vez que calçamos saltos altos: só existem dez pessoas no mundo, no máximo, que de fato devem usar salto alto. E seis delas são drag queens. O resto de nós simplesmente tem que... desistir. Entregar-se. Finalmente aceitar o que a natureza nos diz. Não dá para caminhar com eles. É IMPOSSÍVEL ANDAR COM ESSES SAPATOS MALDITOS. É o mesmo que usar botas antigravidade ou patins.
“As pouquíssimas que conseguem caminhar com elegância em cima deles ficam maravilhosas, é claro –- andar de salto alto é uma habilidade tão impressionante como saber andar na corda bamba ou soprar anéis de fumaça. Admiro quem faz isso. E desejo tudo de bom a essas pessoas. Eu gostaria de ser assim. Mas trata-se de uma minoria minúscula. Todas as outras pessoas -– a ampla maioria -–, ficam inversamente elegantes em relação ao que pensam quando compram sapatos assim. Arrastamos os pés, torcemos o tornozelo, não conseguimos dançar e fazemos careta o tempo todo, enquanto resmungamos por entre os dentes: MALDITOS sapatos. Meus pés estão me matando.
“Resolvi que, essencialmente, estou em greve em relação aos sapatos femininos. Vou deixar de lado todo esse mundo até que os estilistas criem um modelo com que seja possível caminhar por mais de uma hora com o gingado fácil de quando Gene Kelly vai começar a dançar, sem passar um dia inteiro sentindo dor depois. 
"Tenho plena consciência de que minhas exigências representam uma minoria desprezível no momento – ninguém pode saber quanto tempo vão durar os efeitos colaterais que uma década de Manolo Blahnik em Sex and the City causou na sociedade -–, mas estou muito determinada na minha decisão. Afinal de contas, já vi as fotos dos pés descalços cheios de joanetes de Victoria Beckham. Não quero ter pés deformados.” (152-4).

Faço minhas as palavras de Moran. Chega de sacrifícios extremos em nome de um padrão de beleza. Por que botaram na nossa cabeça que é elegante e charmoso coxas e calcanhares acabarem na pontinha dos pés, com os dedos trucidados por sapatos em que mal cabem três dedos, quanto mais cinco?! Nosso pé descalço tá muito mais pra leque que pra funil. Então por que se submeter a cirurgias estéticas pra entrar nesse padrão? Não são os pés que devem ser reconstruídos pra caberem em sapatos cruéis. São os sapatos que devem deixar de ser cruéis. São eles que devem se encaixar confortavelmente nos pés, e não o contrário.
Parece uma síndrome fetichista à la Cinderela, não parece? Nós temos que permanecer imóveis, decorativas, esperando que um sapato pré-fabricado se encaixe nos nossos pés. Só assim encontraremos nosso príncipe encantado! Mas fingiremos sorrindo que ele é que nos encontrou.
Faz muitos anos que não uso salto e nem tenho mais sapato alto. Mas sei que todas as vezes que usei salto alto em algum evento com pessoas conhecidas, sem exceção, fui elogiada por estar usando salto alto. Quer dizer, sempre pelas mulheres: “Que linda que você fica de salto!”, ou “Viu? Viu? Custa muito usar salto alto de vez em quando?”. E sempre me pareceu uma espécie de doutrinação. Elas estavam tentando me convencer, e convencer a si mesmas, que pra ser mulher é preciso sofrer com sapatos que não são humanos.
A segunda fala que me lembro na vida sobre sapatos foi quando eu era jovem e bela e estava com um vestido preto curto e um amigo me elogiou. Eu, um tanto deficitária em relação a receber elogios, reclamei: “Que linda o quê?! Meu sapato [que não era de salto] tá furado!”. E ele, olhando no fundo dos meus olhos, muito sedutor, respondeu: “Lola, nenhum homem vai olhar pro teu sapato”.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

GUEST POST: A GÊMEA BOA, A GÊMEA MÁ E O FEMINISMO

A Lívia, de BH, dona deste blog aqui, me mandou esta análise de como mudamos nosso olhar. E ela percebeu isso vendo a reprise de uma novela! (bom, eu também). 

Além do muito-obrigada, queria te contar que, assim como você, sempre fui feminista, e me lembro do que eu pensava diante das injustiças que via as mulheres sofrerem. Lembra daqueles famosos bailinhos dos anos 80, que íamos quando maiorzinhos (hoje diríamos pré-adolescentes)? Eu achava um absurdo os meninos levarem refrigerante e as meninas salgado. Poxa, qualquer um sabe que refri é só ir no supermercado comprar, enquanto salgado, ou você passa o dia fritando, ou tinha que ir na salgadeira, encomendar, depois buscar, aí põe num pratinho, depois leva o prato de volta e tem que lavar. Várias vezes comentei com as amigas que era injusto, mas quem disse que me davam bola! Sabe as conversas da Mafalda com a Susanita? Pois é, assim que sempre me senti.
Bom, mas depois que cresci, continuei pensando como feminista, mas confesso que em muitos momentos caí na conversa machista de que não tinha mais motivo para existir o feminismo, ri de piadas machistas, julguei mulheres pela aparência e tachei algumas de "piriguete", porque ousavam ter a mesma liberdade sexual masculina. Eu, logo eu, feminista desde criança, caindo na lábia machista... Relendo alguns textos no meu blog percebo claramente essas escorregadas, e o olha que blog nem é tão velho assim.
Por isso sou tão grata a você, porque não sei como fui parar no seu blog e acabei me apaixonando por suas ideias, e a criança feminista que eu fui conseguiu perceber porque piadas que se valem do machismo só são engraçadas quando você não sabe o que é ter pânico quando está sozinha e encontra um homem numa rua escura. Obrigada, Lola, por me ajudar a voltar para o caminho da luz!
Agora que já agradeci bem agradecidinho, queria te contar sobre a experiência de assistir novela. Claro que você deve estar se perguntando porque eu quero falar sobre isso com você, que nem é exatamente uma fã, mas você vai entender... Bem, a Globo reprisou até março a novela Mulheres de Areia, que foi exibida originalmente em 1993 (o remake; na verdade a novela original é de 1973). Assisti à versão de 93, quando eu tinha 13 anos, e assisti novamente este ano. São 20 anos de diferença entre o remake e a reexibição, e há tanta diferença de comportamento, Lola! Penso que se eu tivesse assistido a versão de 73 poderia escrever uma tese sobre o comportamento socialmente aceito em se tratando de gênero, mas por hora vamos nos ater ao básico.
O resumo da novela: duas filhas de pescadores, gêmeas de personalidades opostas, se envolvem com um mocinho rico, filho de um homem malvado. Agora, vamos às gêmeas:
- Ruth é a mocinha: boazinha, cordata, gentil, de personalidade fágil, fala baixo, não se impõe, evita bater de frente com quem quer que seja. Não liga para maquiagem e roupas; é professora, e é mais ligada ao pai. Supostamente virgem, até que revela que se entregou a um homem que a enganou prometendo casamento, engravidou e sofreu um aborto espontâneo, que manteve em segredo por medo de envergonhar a família.
- Raquel, a malvada, desbocada, fala o que pensa para quem quer que seja, sarcástica, gosta de beber, de fumar, detesta viver na pobreza, adora roupas e jóias, não aceita que ninguém mande nela; tem um relacionamento com um mau-caráter (sem ser casada e aparentemente sem pretensão de ser); é mais ligada á mãe, que a admira pela coragem e pela vontade de ter uma vida melhor.
Por aí já dá pra perceber o que nós, mulheres, devemos ser não é. Lola? Sempre boazinhas, tom de voz baixo, não lutar pelo que queremos e só transar fora do casamento se prometerem se casar conosco logo, senão envergonhamos a família! E percebe quem está do lado da filha boa? O pai, claro! O patriarca da família, bom, justo, honesto e imparcial. Enquanto a mãe, que apóia a filha do mal, tem clara predileção pela gêmea má e apóia suas atitudes. A mulher não é imparcial, faz escolhas erradas e não é digna de nossa admiração, pois prefere a malvada. Para bom entendedor, meia palavra basta, né?
Agora vamos a algumas cenas que me lembro:
- Tem o mocinho (um verdadeiro banana), que gosta da Ruth mas se casa com a Raquel (oi?). Aí na lua-de-mel, Raquel bebe e resolve fazer não sei o quê que o mocinho não queria. Aí ele tasca: "Cala a boca, eu sou o seu marido e você tem que me obedecer!" E ela, muito, muito má, como não devemos ser nunca, debocha dele. Puxa, eu que sempre pensei ser tão legal, descobri assim que faço parte do time das víboras. Tsc, tsc. Agora vou me lembrar que tenho que me calar e obedecer meu marido, se quiser ser a gêmea boa.
- Uma outra personagem, a mãe do mocinho banana, já madura e com os filhos criados, resolve se divorciar do marido pra se juntar com um amor antigo (o Alemão). Um dia antes de ir embora, se oferece para ser voluntária num hospital infantil onde sua sobrinha trabalha, ao que a sobrinha responde "mas o Alemão não vai se importar?". Olha. A mulher tem mais de 50 anos, resolve se divorciar, e tem de pedir permissão pro cara que é só um futuro namorado pra trabalhar? Oi?
- A irmã do mocinho, uma rebelde, se casa com um cowboy. Mas ela se casa só pra fugir da família, sem ter nenhum envolvimento com ele. Ele, apaixonado, concorda em manter a fachada do casamento. Mas aí, pra tentar conquistá-la, começa a reclamar de tudo que ela faz, que ela não sabe cozinhar, que não sabe cuidar da casa, e passa a fingir que está apaixonado pela amiga dela. O velho clássico que mulher, pra se apaixonar, tem que ser pisada. Eu faltei à aula nesse dia? Porque eu odiaria um cara que me pisa, e cairia de amores por um homem que tenta me conquistar com gentilezas...
- Sampaio, um personagem secundário, é claramente um mocinho. É casado com Juju, uma mulher fútil, burra, interesseira. Que ele faz questão de mencionar, na frente de todo mundo. A novela toda é ele reclamando dela, falando que é burra (assim, sem cerimônia, na frente das visitas!). Um casamento de pelo menos 20 anos (já que tinham uma filha nessa idade). O cara era um mocinho, Lola, não se esqueça! Um cara do bem, honesto, íntegro. Que chama a mulher de anta. Que diz que ela não tem cérebro. Na frente das filhas e das visitas.
- O pai das gêmeas, o exemplo de homem íntegro, dá uma surra na mulher quando descobre que ela ajudou a filha má em um plano para prejudicar a gêmea boa. Uma surra. E todos aplaudiram, foi um capítulo muito assistido, o povo lavou a alma e ficou muito satisfeito com o corretivo empregado. Lembro muito bem que ninguém condenou o fato, afinal, a mãe mereceu, quem mandou ficar do lado da própria filha?
- E o pior dos piores: o pai da Tônia, que manda ela pra ser estuprada. É, Lola, é isso mesmo. O cara precisava de dinheiro pra pagar um detetive pra encontrar o filho desaparecido, e o malvadão da cidade oferece o dinheiro em troca de jantar com a filha do cara, que ele vivia perseguindo pela cidade. O pai manda a filha ir, sabe? Pra jantar, né Lola, que mal tem? E quando ela chega em casa, destruída, arrasada pelo que tinha acontecido, o pai faz uma cara de "fazer o que?" e deixa a filha chorando. Esse cara era legal, gente boa, um pai bacana, amoroso. Imagina se não fosse, hein?
Enfim, essas são algumas poucas cenas que lembro, mas o machismo é percebido na novela toda, em várias atitudes pequenas, coisas corriqueiras. Acho que o que eu contei serve pra ilustrar o que quero mesmo dizer: as conquistas femininas são tantas! Vejo mulheres jovens desdenhando o feminismo, achando que já conquistamos igualdade e pronto. Pensam que lutamos pelo direito ao voto e que essa foi a conquista maior, trazendo tudo o mais a reboque. 
Não conseguem perceber que há apenas vinte anos nossos maridos nos mandavam calar a boca e isso era aceitável, tanto que era exibido numa novela às 7h da noite; que achávamos engraçado um cara humilhar sua esposa na frente de todos; que um pai que deixava sua filha ser estuprada por um canalha era um bom pai; que todos concordavam que para se conquistar uma mulher era preciso pisar nela; que para fazermos um trabalho tínhamos que perguntar se nosso namorado/marido não se importaria; que o pai é uma referência moral e se bate na mãe é porque ela merece; que mulher boa é aquela que aceitava tudo calada, que não fumava, não bebia, que não envergonhava a família, não tinha voz nem opinião. 
Se uma novela atual mostrasse algo parecido, seria duramente criticada, ficaríamos revoltadas ao assistir. Mas há vinte anos, tudo isso era muito normal.
E quem foi que ajudou a mudar a nossa mentalidade? À quem devemos agradecer pela evolução do comportamento nesses últimos vinte anos? Ao patriarcado? Acho que não...