segunda-feira, 30 de abril de 2012

CRÍTICA: PRECISAMOS FALAR SOBRE KEVIN / É a mãe

Nunca fomos tão felizes.
 
Nossa, vi Precisamos Falar Sobre o Kevin, e ele me derrubou. Achei perturbador. Fiquei grudada na cama, muito assustada e confusa, como se estivesse vendo um filme de terror. Enquanto procuro entender como a Tilda Swinton não foi indicada ao Oscar de melhor atriz, fico pensando em como estou com vontade de ler o romance de 2003 de Lionel Shriver, que inspirou o filme de Lynne Ramsay (uma diretora mulher, aleluia!).
O drama segue a perspectiva de uma mãe (Tilda) que tem um filho problemático. A trama é contada em uma série de flashbacks. Quando que a gente percebe que alguma coisa vai dar muito, muito errado? Tipo: antes da menina nascer, aliás, antes do Kevin nascer, vemos que a loirinha já tá usando um tapa-olho. Portanto, no momento em que Kevin e irmã começam a habitar o mesmo tempo e espaço, a gente sabe que ela vai perder um olho. Pensei que seria com o aspirador de pó. Daí pensei que seria com uma flechada. Mas acho que ficamos sabendo mesmo que o babado é forte quando vizinhas passam, do nada, a agredir Eva.
E logo que a gente nota que o menino não é boa pessoa, a gente (ou pelo menos eu) torce pra que, pelamor, ninguém invente de ter um bichinho de estimação em casa. Porque todo mundo sabe que existe uma grande atração de serial killers por animais. Aí, quando aparece um porquinho da índia, ou um hamster, ou sei lá que bichinho peludo e fofudo é aquele, a gente até fica surpresa que ele sobrevive cinco minutos naquele campo minado.
Só pra variar, praticamente todas as opiniões que ouvi sobre a história colocam a culpa por ter um filho psicopata na mãe. A julgar por essas pessoas, sempre tão ligeiras em responsabilizar as mães, parece que os filhos moram numa ilha deserta só com suas progenitoras. Kevin tem pai também, pelo que eu pude notar. E é um pai que sempre lhe dá razão e que justifica seu comportamento. Pior: é o pai que lhe dá um arco e flecha e o ensina a usá-lo. Fica o aviso: se você desconfiar de qualquer impulso agressivo do seu filho, não o presenteie com armas letais. Obrigada.
Mas também não entendo porque todo mundo culpa tanto os pais, sempre. E, claro, principalmente as mães. Num filme que eu adoro, A Outra História Americana (American History X), o fillho mais velho, interpretado por Edward Norton, torna-se um neonazista, e seu irmão mais novo também, mais pela influência do Edward. Mas quem influencia Edward? Ninguém na casa dele é neonazi. Os pais são carinhosos com os filhos. Há uma cena em que o pai, no meio da mesa de jantar, diz alguma coisa racista. Mas pô, se cada filho que ouvisse seu pai dizer algo racista tatuasse uma suástica no peito, estaríamos bem pior do que estamos agora. No entanto, a gente responsabiliza os pais pelas atrocidades que seus filhos cometem.
Eu acredito que psicopatas existam e que sejam incuráveis. Acho que pode faltar um pedaço do cérebro que possibilite a empatia. E que, por mais que a criança tenha pais legais, essa falta de empatia pode causar algum estrago cedo ou tarde. Mas também acredito que psicopatas possam ser criados pelo meio ambiente. Uma criança que é sistematicamente abusada e torturada pelos pais têm grandes chances de querer repetir o comportamento já na adolescência. Mas assim, eu sou contra a pena de morte. Por mais que algumas pessoas nunca vão aprender a conviver em sociedade, elas não devem ser mortas. Mas também não devem ser soltas.
Kevin odeia sua mãe, ou é o que transparece, desde o comecinho. E ela não gosta dele. Só que eu acho que ela faz o possível. Ela tenta se conectar com ele, e não consegue. Sua gravidez não é desejada, isso é claro, mas até aí, a maioria também não é, e nem por isso temos uma legião de serial killers. Não sei se Eva tem depressão pós-parto, que é um dos grandes tabus da humanidade. O mito do instinto materno é tão grande que poucos ousam falar que muitas mães sofrem e têm pensamentos pouco carinhosos pro bebê depois do parto. Mas essa é uma doença, é depressão, precisa de tratamento. E não fica claro se Eva sofre disso.
Também não sei se é possível que uma criança pequena decida que vai destratar um de seus pais. É o que acontece no filme. Pro resto do mundo, Kevin é um docinho de coco. Pra sua mãe, porém, ele é um pesadelo. Eu me peguei pensando o que eu faria num caso desses, se tivesse um Kevin. Depois de tentar de tudo, creio que eu jogaria a toalha. Desculpe a insensibilidade e a covardia, mas eu me separaria dele, o deixaria com o pai, com quem ele se dá bem, e tentaria seguir minha própria vida.
É uma atitude egoísta, eu sei, e eu digo isso sem ser mãe, nem nunca querer ser mãe. E tenho certeza que a maior parte de vocês mães não desistiria. Mas eu só fiquei pensando se visitaria o Kevin muito de vez em quando ou se eu fugiria logo pro México. Não caio nessas de amor incondicional. Se um filho fizer algo terrivelmente errado, é dever dos pais perdoá-lo? Vamos supor que, em vez do guri arruinar a parede que você pintou com tanto esmero, ele tivesse torturado até a morte alguns cãezinhos. Você não deserdaria o menino? Quantas ninhadas de cachorrinhos você permitiria que ele eliminasse até interná-lo?
Imagino que o livro deve oferecer muito mais detalhes de tudo. Soa altamente improvável que Kevin consiga enganar a todos (exceto a mãe) por tanto tempo. Um garoto desses deve aprontar maldades na escola. Sua irmãzinha aparece pouco, o que é conveniente, porque suponho que ela sofra pacas nas mãos de Kevin. Um dos meus problemas com o filme é que sabemos tão pouco sobre Eva, a mãe.
O único momento em que ela diz algo duro é no campo de golfe, quando ela fala o que umas cinquenta pessoas escrevem em todo santo post que publico sobre gordofobia -– que metabolismo lento ou genes o quê, gordos são gordos porque comem mal e muito. Por mais que eu gostaria de avisar que os babacas que repetem essas coisas vão gerar filhos psicopatas, hum, acho que não funciona assim. E o pai de Kevin (John C. Reilly) é bonzinho demais. Tá, mais pro lado panaca mesmo. Dá vontade de chacoalhá-lo e dizer: escuta, cara, você não tá vendo que seu adorável filhinho parece saído de A Profecia? Procura o 666 no couro cabeludo dele, que deve estar lá!
O lado bom é que, na vida real, se a população mundial aumentar muito e os governos quiserem fazer com que os casais tenham menos filhos, é só passar Precisamos Falar sobre Kevin na TV uma vez por ano. Problema resolvido.

Escrevi mais sobre Kevin aqui, um ano depois.

domingo, 29 de abril de 2012

CINCO VÍDEOS PRA VOCÊ VER AGORA

Domingão, quase um feriado prolongado, e você aí vendo sei lá o quê passa na TV hoje? Seus problemas acabaram! Assista o incrível documentário Miss Representation, que ainda está no YouTube, com legendas em português. Mas veja já, porque ele fica sendo tirado por motivos de direitos autorais. Vale muito, muito a pena. É uma hora e meia que vale como uma verdadeira aula de alfabetização em mídia, se preferir chamar assim. E, como eu já falei, pode ser uma visão americana, mas é muito parecida com a nossa. Organize uma sessão de cinema e passe o documentário na sua escola e na sua faculdade, seguido de uma ampla discussão.
Pro pessoal que constantemente me pede indicações sobre a história feminista no Brasil, tá aqui uma boa pedida: o documentário de 26 minutos A Vovozinha e o Feminismo, escrito e dirigido por Renata Druck, com roteiro de Keka Reis, e que traz depoimentos importantes de Inês Castilho, Maria Lygia Quartim de Moraes, Céli Pinto, e Lia Zanotta. Junto aos depoimentos, também há algumas cenas teatrais divertidas. É só meia hora, mas você pode partir do doc pra leitura de Breve História do Feminismo no Brasil, de Maria Amélia de Almeida Teles.
Este é um vídeo curtinho e engraçado chamado The Flip Side, que basicamente mostra o que aconteceria se as convenções de gênero, tão rígidas, fossem invertidas. Eu gostaria que essas convenções simplesmente desaparecessem, mas, como isso não vai acontecer tão cedo, este é um bom exercício pra se pensar na estupidez disso tudo.
Este é o curta mais recente da jovem feminista Elisa Gargiulo, e mostra bem o que costuma acontecer quando uma moça conta ao namorado que está grávida. E conta com a participação de Vinicius de Oliveira. Lembra do ótimo ator de Central do Brasil? Pois é.
E tem este comercial que uma leitora me indicou ontem. Ahn, não é exatamente uma recomendação, mas tem ligação com alguns dos vídeos anteriores. É assim: se você estudar online numa tal de Open English, você será alto (Veja feelings) e bonitão e terá aula com uma professora gringa e loira. Agora, se você estudar inglês em qualquer outro lugar que não seja a Open English, você será feio e terá aula com professora gorda que fez inglês em Buenos Aires (Hã? Essa é nova pra mim) e que gosta de imitar galinha. Quantos juízos de valor esses publicitários conseguem passar em apenas 30 segundos, hein?

sábado, 28 de abril de 2012

GUEST POST: "TU É FILHA DAQUELE NÊGO?"

Como faço com comentários que se destacam, guardei este da Cândido no post Feio é o seu racismo. Já faz um tempinho que ela o escreveu, mas gostaria de compartilhá-lo com vocês. Ele vem a calhar numa semana marcada pela decisão unânime do Supremo Tribunal Federal de que as cotas raciais adotadas por 42% das universidades federais no Brasil (só 42%?!) são, sim, constitucionais. Talvez este relato pessoal da Cândido ajude o pessoal que não acredita na existência do racismo (ou que pensa que, se racismo existe, ele não influencia diretamente a vida das pessoas) a refletir um pouco.

Leio seu blog já faz muitos meses, gosto muito dos seus textos, nunca havia comentado nada, mas hoje vim falar um pouquinho porque essa questão do racismo sempre foi algo muito presente na minha vida.
Bem, sou filha de pai negro (por mais que todo mundo adore dizer que ele é "só um poquinho mais escuro") e mãe branca.
Nasci super branquinha, com sardas e um cabelão MARAVILHOSO, bem cacheadão, crespo, que quando criancinha era loiro e com o tempo foi escurecendo, chegando na adolescência a ter todas as cores e tamanhos possíveis dada a minha "rebeldia" de não me render aos alisamentos constantes a que era pressionada por minha família de pai (pasmem, a negra) a fazer. Não tenho traços tão afilados como os da minha mãe; na verdade sou a cara do meu pai. Tenho uma irmã mais escura e um irmão da minha cor. Todos de cabelos crespos.
Quando era criança não conseguia entender muito bem como a família do meu pai que era negra odiava tanto o fato de eu e minha irmã termos "cabelos de negros". No meu caso esse comentário sempre vinha junto com o "não sei como tu tão branca nasceu com esse cabelo ruim de nêgo". Tipo, pra minha irmã era de se esperar pela cor, MAS EU... um absurdo, que deveria ser corrigido com um alisamento assim que eu crescesse um pouco. E pro meu irmão, ah! era só raspar, né?
Sempre me sentia mal quando ia passar os fins de semana na casa dessa minha família. Fui crescendo, estudando e aprendendo sobre a história da escravidão negra no Brasil e então fui entendendo que esses tipos de visões, comportamentos, atitudes da minha família eram herança da nossa sociedade escravocrata. Eles nem sonham que são racistas, eles perseguiram um ideal de beleza branco a vida inteira, e eles não vão mudar. O que tento fazer hoje é educar meus priminhos mais novos a não repetirem esse tipo de comportamento.
Era muito ruim escutar das pessoas quando saía com meu pai: "Nossa, essa menina é tua filha? Tem certeza?" Era pela cor? Era duvidando da minha mãe? Horrível. Meu pai deve ter sofrido muito por isso.
Um tempo desses fui na casa de uma amiga e ao me apresentar ao seu pai ele me perguntou de quem eu era filha (coisa de cidade pequena). Quando eu disse de quem eu era filha, ele falou: "Mentira! Tu é filha daquele nêgo feio? Pode não..."
Péssimo, né? Sempre fico sem jeito, mas algo que sempre me surpreende é que quando as pessoas descobrem que meu pai é auditor fiscal da Fazenda ele fica "moreninho"!
Essa questão da "morenidade" é bem complexa, mas explica muitas situações de racismo velado. Ler Gilberto Freyre com um olhar bem crítico sobre sua "democracia racial" e o "mito da morenidade" é bom pra entender algumas situações. Jessé Souza também consegue explicar a partir de uma leitura bem particular de Freyre como se deu a "modernização" do Brasil. É interessante a explicação dele pra porque a gente tenha absorvido somente alguns aspectos do que vem a ser modernidade ocidental (racionalidade, estado, etc) e como a questão racial, principalmente do negro, ficou nisso tudo.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

É POSSÍVEL VIRAR LÉSBICA?

Sei que este post vai gerar polêmica, que vou ganhar mais meia dúzia de haters por causa dele, e que ele estará cheio de equívocos proferidos por uma leiga. Mas venho querendo escrevê-lo faz tempo, e se nem no meu próprio bloguinho pessoal posso escrever o que eu quero, vou escrever onde?
Eu, como várias outras mulheres hétero, passei a maior parte da minha vida sem ter amizade com lésbicas. Tudo bem, talvez minha técnica de handball fosse lésbica, mas ela não era necessariamente minha amiga, e sua orientação sexual não tinha a menor importância pra mim. Nunca fui cantada por uma mulher, pelo menos não que eu tenha notado. Não sabia muito sobre lésbicas, e não pensava muito nelas.
Aí eu fui fazer mestrado na UFSC. E lá havia muitas lésbicas. Quer dizer, não que eu soubesse. Porque junte a minha total falta de gaydar a uma grande dose de ingenuidade e você entenderá porque eu pensava que duas moças que moravam no mesmo apê havia dez anos eram apenas colegas de quarto. Quando me aproximei mais deste casal e contei isso pra elas, nós rimos. E percebi que elas têm birrinhas parecidíssimas àquelas que eu tenho com o maridão (“Você não me ouve mais”, etc).
No doutorado conheci outra mulher que veio a ser uma das pessoas mais doces e gentis que conheci nos últimos tempos. Aliás, em toda a minha vida. Mesmo que ela esteja em Floripa e eu em Fortaleza e a gente não tenha mais tanto contato, vou amá-la pra sempre. Bom, ela, que agora tem mais de 50 anos, é lésbica. Mas nem sempre foi assim. Até os 30 e poucos anos, ela foi casada com um homem. Tem três filhos homens, todos adultos (e héteros), e se dá super bem com eles. Ela me contou que ainda sente tesão por homens, mas se identifica como lésbica. E ela só se apaixona por mulheres. Olhando pra trás, ela constata que sempre se interessou por mulheres.
Através dela, conheci suas amigas, a maior parte lésbicas. Elas são muito unidas, todas se conhecem. Admito que fiquei um pouco decepcionada ao ver que lésbicas, inclusive lésbicas feministas, também gastam tempo falando de esmalte. Mas todas foram simpáticas comigo. Enfim, isso não tem nada a ver com o tópico.
Mas, ao conhecer mais lésbicas, vi que não era nada incomum que mulheres “se descubram” lésbicas depois de uma certa idade. Uma ex-professora minha, lindíssima, que já tinha sido casada com homens, estava, depois da menopausa, “experimentando” se relacionar com mulheres. E gostando, pelo que ouvi falar.
Pois é, essa é a primeira parte polêmica: mulheres podem “virar” lésbicas, ou nossa orientação sexual já nasce definida? A maior parte das pessoas LGBT acha que não é uma opção, e se recorda da primeira vez que se sentiu atraíd@ por alguém do mesmo sexo, ainda bem criancinha (assim como eu me lembro de quando aquele jogador de futebol mexeu comigo). Se pensarmos que orientação sexual é uma opção, abrimos as portas para religiosos e psicólog@s homofóbicos que insistem que é tudo uma questão de caráter e que homossexuais podem ser “curados”, ou seja, podem virar héteros. Mas será que é igual pra todo mundo?
Por outro lado, me parece bem restritivo afirmar que uma mulher (ou um homem) hétero não pode buscar novas experiências com alguém do mesmo sexo. Eu não digo que a gente pode treinar nosso olhar, que a gente pode aprender a achar atraentes pessoas gordas ou mais velhas ou com algum defeito físico? Que a gente pode tentar se “descondicionar” do que a sociedade nos dita como normal e aceitável e padrão? Então por que não poderíamos fazer isso em relação a pessoas do mesmo sexo? Se podemos ampliar nossos horizontes pra, sei lá, gostar de paladares inéditos e diferentes, por que não poderíamos ampliar nosso desejo sexual?
Claro, falar é fácil. Fazer é que são elas. Neste momento da minha vida, eu sinto que teria que nascer de novo pra poder me sentir sexualmente atraída por mulheres. Mas vai saber o que pode acontecer no futuro... Afinal, já ouvi uma mulher que foi hétero a maior parte da vida perder o marido (geralmente nos casamos com homens um pouco mais velhos e, pra piorar, eles costumam morrer mais cedo que a gente) e, depois de amargar a solidão, testar outras pairagens. O argumento dela, que me pareceu bastante sólido, foi: “Estou com 55 anos. Tem muito homem que não quer nada com mulher mais velha. Já lésbicas não têm essa frescura. E então, eu devo desistir da minha sexualidade e ficar sem fazer sexo até morrer, ou posso tentar me relacionar com pessoas do mesmo sexo?
Este é o segundo ponto polêmico dessas minhas divagações, porque sugere que lésbicas são lésbicas por não conseguirem homem. E nada mais distante da realidade, óbvio. Primeiro que lésbicas não querem homem. Depois que, se quisessem, elas são lindas e inteligentes e provavelmente conquistariam qualquer cara que quisessem. 
Tenho certeza que a imensa maioria das lésbicas é lésbica desde que se conhece por gente e, se algum dia fez sexo com homem, foi só pra tentar se adequar ao que um mundo homofóbico e machista esperava dela. Fez e não gostou, ou fez e não achou aquilo tudo, ou fez e concluiu categoricamente que aquela não era sua praia, e tratou de se assumir lésbica. Mas estou pensando em mulheres que se consideram hétero a maior parte da vida, e resolvem experimentar. A gente ouve sempre falar que a sexualidade feminina é mais fluída, menos estanque, que a masculina. E o mundo permite um maior contato físico entre mulheres –- um contato físico necessário que pros homens só é permitido aos praticantes de esportes. Também ouvimos falar que não é de todo raro mulheres que se identificam como hétero terem, na adolescência, alguma experiência com outra mulher. Mas uma mulher se interessar por outra mulher, ou inclusive transar com outra mulher, não faz dela lésbica, sequer bissexual. Acho que ela tem que se identificar como tal, e essa identificação vai além de encontros furtivos. Talvez, como disse essa minha amiga querida, a atração pelo mesmo sexo inclua não só sexo, mas também amor e outras intimidades.
Bom, eu tenho muito mais dúvidas do que certezas, como já deu pra notar. Mas será que a descoberta da homossexualidade é igual pra toda mulher? E, voltando ao título, é possível virar lésbica?

quinta-feira, 26 de abril de 2012

“ME ACHO FEIA E MAGRICELA. ME AJUDA!”

Recebi o email abaixo, e quero aproveitá-lo para minha seção de perguntas e respostas. 

Meu nome é Laura e vim te parabenizar pelo seu blog, que é simplesmente maravilhoso! Lindo! Agora vem a parte difícil: eu queria muito a sua ajuda para um probleminha... Tenho treze anos e me acho feia e magricela, sabe? Nunca contei a ninguém porque tenho certeza que vão falar “Nossa, você é magrinha, meiguinha e ainda reclama. Tem um monte de gordinha que dava tudo para ser como você!”. Mas isso não ia me fazer sentir mais especial, sabe? Vimemos em um mundo em que a busca pela perfeição é uma rotina e já estou cansando disso. Me sinto feia e fora dos padrão... Não tenho olhos azuis ou verdes, não são tão alta digna de uma modelo e apenas estou perdida... Por favor, responda.

Minha resposta: Laura querida, queria muito poder te ajudar. Queria mesmo que uma resposta minha te resguardasse de todo o condicionamento da sociedade sobre o que é ser linda. Mas isso não é possível. Acho que já narrei uma conversa que tive com uma amiga, também feminista, doutora, e crítica da mídia: ela estava perguntando como que a gente, que está a par de toda a manipulação, que estudou e continua estudando tanto, não está a salvo de se deixar abater por um padrão de beleza que insistem em nos impor? É muito, muito difícil se autoaceitar. Somos ensinadas a odiar nossos corpos. Recebemos dezenas de lições todos os dias, vindas de todos os lados, de como nossos corpos são inadequados e vergonhosos, e de como problemas que a gente nem sabia que tinha precisam ser resolvidos com a máxima urgência (por exemplo: clareamento anal).
Não vou entrar na questão de que você provavelmente é linda, ou que você, por ser magra, já tem a vantagem de estar mais próxima do padrão de beleza vigente. Você já percebeu faz tempo que “a busca pela perfeição é uma rotina”, e, com treze anos, já está cansada. Parabéns por se cansar. Tem gente que passa a vida toda buscando essa perfeição que jamais virá -- e não se cansa, não se revolta. 
A pergunta talvez seja por que nos cobram essa busca eterna pela perfeição. Bom, a pergunta está muito inocente, muito sem sujeitos. Quem nos cobra? A mídia, nossos pais, nossos amigos, quem nos educa, todo mundo. E quem é cobrada? Certamente mulheres são cobradas pela beleza física muito mais do que homens. E quando digo “são cobradas” não excluo, de jeito nenhum, que nós mulheres fazemos enormes cobranças a nós mesmas. Aprendemos a ser implacáveis umas com as outras. Aprendemos que temos que estar sempre competindo, que o prêmio é a aceitação dos homens, e que nossas armas são a aparência física. Parece que é só isso que importa, né? Só nossa aparência, como se não tivéssemos ideias e conquistas que não dependem em nada da aparência.
Acho que há duas vertentes principais que respondem por que somos cobradas pela perfeição física. A mais óbvia é: pra consumir. Se a gente estivesse satisfeita com nossos cabelos, não gastaria um monte de dinheiro com cremes especiais, hidratação, pintura, cortes mil, chapinha, fivelinha, e sei lá o que mais se usa no cabelo. Fazer mulheres se sentirem feias dá muito dinheiro.
A outra vertente -– que não necessariamente contraria a primeira –- é que fazer com que as mulheres se preocupem unicamente com sua aparência nos distrai de pensar em coisas mais importantes, como, sei lá, mudar o mundo e ser igual a um outro gênero aí. Trata-se de uma forma de opressão extremamente eficiente. Pense em quantas meninas sabem que serão julgadas por sua aparência e, por esse motivo, evitam falar em público. Tem mulher que não vai à praia por ter vergonha do seu corpo. Se a gente pensar bem, verá que a exigência pela perfeição começou a vir com tudo num momento em que as mulheres estavam cada vez mais fortes. Foi no final dos anos 60 que o padrão de beleza ficou mais magro (e, portanto, mais impossível de se atingir). Um dado que eu considero interessantíssimo é que a celulite foi inventada nos anos 70. Não que ela não existisse antes, óbvio, é só que não era algo visto como preocupante. Não era um problema, e, portanto, não havia nome pra esse “mal” que acomete tantas mulheres. E quem é mais fácil de dominar? Alguém autoconfiante, que se gosta, ou alguém que se odeia? Imagine como deve ser acordar todo dia, se olhar no espelho, e gostar do que vê, em vez de ficar procurando mil e um defeitos? Imagine o poder que essa atitude nos dá.
Uma pergunta que você deve fazer a si mesma é: por que você quer ser linda? Por que estar fora do padrão (não ser tão alta ou ter olhos claros) te aflige? A propaganda vendida pra gente é que pessoas lindas não têm problemas, que a vida delas é perfeita. Mas ninguém acredita nisso de verdade. A contrapartida é que mulheres feias (e temos nomes pra elas que não temos pra homens: baranga, mocreia, dragão, etc) não seduzem ninguém e morrem sós. A gente também sabe que isso é mentira. Afinal, a enorme maioria das mulheres no Brasil está fora do padrão de uma Gisele ou Ana Hickman, e mesmo assim continuamos transando, namorando, casando, enfim, tendo relacionamentos afetivos e sexuais.
Logo, você não ser tão alta ou não ter olhos claros só deve te preocupar se você quiser seguir carreira de modelo ou miss. E, claro, nem toda modelo ou miss tem olhos claros, mas digamos que grande parte siga um padrão de cor, altura, magreza, pernas quilométricas, cabelo liso e tal. Aí a gente lê as entrevistas delas e quase todas dizem que, quando tinham 12, 13 anos, eram consideradas feias na escola... Você quer mesmo fazer parte de um padrão de beleza em que até as modelos ou estão fora da realidade (todas são photoshapadas à exaustão) ou são vistas como feias? Pra quê?

P.S.: Recomendo muito que você veja o documentário Miss Representation. Ele fala de como a mídia insiste que o único poder que as mulheres têm é a beleza, e como esse “poder” nos restringe de lutar por formas mais construtivas de poder, como representação política e posições de destaque na nossa vida profissional.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

GUEST POST: SUPEREI UM CASAMENTO MACHISTA

Uma leitora muito querida, que vou identificar apenas como C., me enviou este relato.

Sou fã de carteirinha do seu blog. Sou professora e muitas vezes recomendo a leitura de seus posts nas minhas aulas. Vários deles já foram marcados no facebook e fico super feliz quando entro no face e vejo que uma aluna minha marcou uma publicação tua. Isso porque eu trabalho em um pré comunitário e muitas das minhas alunas são criadas em culturas machistas e repressoras. Quando elas repassam pras outras as suas publicações é como se você estivesse quebrando os tijolos daqueles muros de verdades absolutas no qual elas cresceram. Obrigada pela tua ajuda.
Venho de uma família de classe média. Sempre me considerei uma pessoa bem resolvida, de mente aberta e crítica. Ou seja, tinha crenças totalmente ilusórias ao meu respeito. Vivia no doce mundo das fadas.
Comecei a namorar aos 20 anos de idade, e namorei por 8 anos. Meu namoro era uma coisa meio indefinida, só nós encontrávamos aos fins de semana, geralmente para fazermos programas que meu namorado escolhia. Eu tinha uma postura muito passiva em relação a esse relacionamento e nas poucas vezes que colocava minhas vontades na frente dele eu encontrava um muro, uma negação ou uma postura infantil de cara amarrada e "vou fazer mas estou contrariado". Eu me submeti a isso, me submeti porque achava que precisava dele, que não era bonita, que ninguém iria olhar pra mim, que sem ele eu ficaria sozinha.
Como cheguei a isso? Hoje, depois de muita terapia sei que foi tudo construído ao longo da minha adolescência, onde eu era considerada a menina esquisita da escola: muito pálida, cabelo preto que geralmente escondia meu rosto, e livros, muitos livros. Eu era tímida e tinha os livros como amigos fiéis. Meus apelidos carinhosos eram "bruxa" ou "sapatona". Dentro de um grupo burguês de classe média eu era considerada totalmente fora dos padrões estabelecidos. Nem preciso dizer que demorei até os 16 anos pra beijar na boca. Minhas inseguranças eram enormes.
Na faculdade elas melhoraram um pouco, comecei a sair mais, a ficar com outros caras e a me sentir melhor comigo mesma. Porém, ao contrário das minhas colegas, eu não tinha um namorado. Elas, como boas moças de classe média, tinham seus namoradinhos de escola, e eu ainda era virgem aos 20 anos. Um absurdo e uma esquisitice. Então, quando conheci meu namorado e ele se mostrou apaixonado, eu fiquei encantada, apaixonada, de olhinhos brilhantes: eu era alguém!
Engraçado como a vida nos prega peças e nos tornamos os prisioneiros da caverna de Platão, vivemos vendo as sombras e acreditamos que elas são reais. Eu era infeliz mas acreditava que a vida era assim mesmo e, apesar de ser consciente, de trabalhar desde os 18 anos, eu via mas não enxergava.
Durante esses oito anos meu namorado terminou duas vezes comigo. As duas foram por telefone, e depois eu soube que ele terminou porque estava me traindo. Eu voltei pra ele as duas vezes.
O problema é que eu era a menina perfeita pra casar, de boa família, trabalhadora e tinha acabado de passar no mestrado aos 21 anos de idade. Na cabeça machista dele eu era a mulherzinha perfeita, aquela que ele iria enrolar mas que sempre seria dele. E eu fui, por 9 anos eu fui isso, aceitei tudo, mesmo sabendo das traições e mesmo sendo infeliz eu voltei com ele e menti, menti pra mim mesma e disse que era feliz.
Eu era uma pessoa com duas vidas, no campo profissional era uma mulher segura, alegre e "bem resolvida", e no campo afetivo eu era uma "mulherzinha".
Apesar de tudo eu casei (importante dizer que minha família foi contra e que eles enxergavam o que eu não queria ver) e tentei. Durante quase dois anos fiz tudo pro casamento dar certo. Minha infelicidade era uma coisa apertada no meu peito, algo que eu não conseguia definir. Admitir que meu casamento não me fazia feliz era admitir um grande fracasso como mulher: afinal, eu ia fazer 30 anos, eu tinha que começar a pensar em filhos e não ficar chorando pelos cantos e sendo uma chata de galochas.
Engordei. Fiz dieta. O problema é que à medida que eu perdia peso eu comecei a ter dores, dores nos ombros, no pescoço, enxaquecas. Eu vivia com dor. Fui ao médico e me viraram do avesso, nem preciso falar que não encontraram nada, afinal meu problema não era físico. Meu pai, que é médico, já tinha sacado o que eu não queria admitir: meu problema era depressão. Ele me levou a um colega e eu comecei a tomar antidepressivos. Me senti horrível, sempre fui agitada e brincalhona, e o remédio me deixava sonolenta. Era uma cópia sem graça de mim mesma.
Meu marido achava que eu estava ficando maluca, era o que ele falava pras pessoas. Um dia consegui tomar coragem para falar pra ele que eu era infeliz, falar tudo que estava sentindo. Ele se mostrou compreensivo, e no dia seguinte ligou pro meu pai. A pergunta que ele fez é se o remédio tinha mudado meu comportamento, se eu tinha virado outra pessoa. Meu pai, morrendo de raiva, respondeu que o remédio só tinha me dado forças pra falar o que sentia. Os dois nunca mais se falaram, meu marido passou a criticar muito meu pai. O nome dele era proibido lá em casa, assim como o da minha mãe. Pra estar casada eu tinha que ter uma vida dividida em que minha família e meu marido não combinavam.
Pouco depois saí de casa e voltei pros meus pais. Passei um fim de semana chorando sem parar. Minha mãe, em desespero, conseguiu o telefone de uma terapeuta e marcou uma consulta: foi a melhor coisa que eu fiz.
Voltei pra casa pra terminar direito aquele casamento, eu devia isso pra mim. Saber que não tinha mais volta.
Depois de encerrado o casamento, saí de casa e voltei pra casa dos meus pais. Voltei me sentindo livre, voltei jogando fora a cartela e remédios e com a certeza de que não preciso mais, voltei conhecendo a mim mesma, voltei sabendo que sou capaz de muitas coisas e que sou dona da minha vida. Voltei a ser feliz.
Nem preciso dizer que meu ex não entendeu nada, que me chama de maluca, frígida, diz que eu tinha um amante etc. Muitas pessoas acreditam nele, muitos "amigos" me julgam e concordam com ele. Aparentemente eu estou bem demais e feliz demais. Sei que pra essas pessoas eu sou um mau exemplo, pois admiti que não quero ser infeliz casada (como tantas pessoas fazem) e que sou dona da minha felicidade. Pra essas pessoas eu desisti fácil.
Lola, escrevo isso porque sei que muitas mulheres vivem o que eu vivi e não têm a sorte que eu tive: de contar com uma família maravilhosa que me apoiou muito. Escrevo isso porque olho pra minha história e penso que ela poderia ter sido escrita por uma mulher da década de 1950, 60 ou 70, mas que foi escrita por mim, uma mulher independente e crítica. Uma mulher que apesar de tudo não conseguia enxergar que estava presa nas amarras de uma sociedade machista e que reproduzia conceitos que abomino.
Chego ao fim desse relato com um agradecimento pra ti, você com seus textos foi capaz de abrir meus olhos. Foi conversando sobre um post seu (o da menina estuprada numa boate) e ouvindo a opinião do meu ex-marido que eu pensei de maneira clara: que diabos estou fazendo com esse MACHISTA?