sexta-feira, 30 de novembro de 2012

KARINA VEIGA VAI A JÚRI POPULAR

Querida Karina,
Você não me conhece, e até ontem eu nunca tinha ouvido falar de você. Algumas pessoas me contaram meio atrapalhadamente como você caiu na boca do povo da internet: você, com 16 anos, transou com seu namorado da mesma idade. Ele disse que você o traiu (que palavra forte, né? Trair! Sendo dita por jovens!), e, para se vingar, colocou fotos e vídeos de vocês dois fazendo sexo no seu perfil no Facebook. Foi isso que eu entendi.
Aí o pessoal das redes sociais, que pelo jeito não anda fazendo muito sexo (porque, se fizesse, não estaria tão obcecado pela vida sexual alheia), e aparentemente não imaginava que meninas de 16 anos transavam, e nunca tinha visto qualquer imagem de sexo anal, pos o seu nome nos Trending Topics do Twitter. E ficou fazendo piadinha o dia todo. E apostas sobre quando você vai se matar. Quer dizer, não me parece ser gente com muita empatia no coração.
Não sei bem por que estão falando em suicídio. Deve ser pelo caso da Amanda Todd, uma canadense de 15 anos que, quando tinha 13, cometeu o pecado mortal de mostrar os seios durante milésimos de segundo pruma câmera. Por causa disso, foi perseguida e bullied, teve depressão, implorou por ajuda, e acabou se matando. Eu falei sobre o caso no meu blog, e, sabe, enquanto escrevia, eu pensava: este post não vai ter discussão, todo mundo vai achar horrível uma sociedade que condena uma menina à morte, todo mundo vai chorar por Amanda e usá-la como exemplo para que uma atrocidade dessas –- julgar e negar apoio a uma garota que não cometeu crime nenhum -- não se repita.
Eu sou muito ingênua, porque não acreditei quando os comentários começaram a chegar. Era um montão de gente cretina dizendo que Amanda era uma vagabunda, que tinha mesmo que morrer, ou que foi fraca em se matar. Pena de morte pruma menina de 15 anos! Não pude acreditar no que vi.
Eu já tive quinze anos -– três décadas atrás, na década de 80. E foi com essa idade que descobri o sexo e gostei muito e experimentei bastante com vários carinhas. Eu era descompromissada e queria transar; eles também, uma situação win-win. Não pensei que estivesse fazendo algo de errado. Mas logo vi que o que valia pros meus amantes não valia pra mim. Vi que eles eram valorizados por terem experiência sexual, enquanto eu era desvalorizada por exatamente o mesmo! Ué, por que, se estávamos fazendo a mesma coisa (sexo)?
Eu já me considerava feminista naquela época, e nunca entendi aquele padrão duplo. Naqueles tempos não existia internet, mas esse detalhe não impedia que várias pessoas falassem mal de mim. E por quê? Porque eu fazia sexo (com camisinha)! Com rapazes que também faziam sexo! Óóó. Mas não abaixei a cabeça, não me envergonhei, porque eu sabia que não havia nada pra me envergonhar. Eu discutia e exigia respeito. Eu queria ter a mesma liberdade sexual que os meninos que eu pegava! Nem mais, nem menos, só a mesma liberdade. Por que seria pedir demais?
Não sei se as pessoas pararam de falar mal de mim, só sei que parei de ligar. E continuei tendo uma vida sexual bastante movimentada, até que, com 23 anos, me apaixonei, virei monogâmica (é uma escolha, não a única), e estamos juntos até hoje, 22 anos depois. Felizes.
Mas eu sempre tenho esperança que as coisas mudem. No meu tempo de adolescente, virgindade ainda era avaliada como importante pras meninas. Hoje não é mais, então eu pensava que o julgamento de garotas que fazem sexo tivesse, talvez, também caído por terra. Ledo engano. A patrulha da moralidade continua firme e forte, como o seu caso prova.
Duas coincidências aconteceram esta semana. Na segunda-feira, fui participar de um seminário sobre mídias machistas numa universidade particular, e uma professora comentou, espantada, sobre o que tinha visto num fórum com alunos daquela universidade. Parece que uma jovem aluna saiu com outro cara enquanto estava namorando um aluno, e foi um auê. A professora não entendia como tantas moças estavam chamando a menina de vadia, piranha, vaca e sei lá mais o quê. De fato, se já não faz nenhum sentido os homens se intrometerem, faz ainda menos sentido as mulheres condenarem o comportamento sexual de uma mulher. Porque o insulto que elas usam contra a colega foi ou será usado contra elas. Pruma mulher ser chamada de vadia, só precisa ser mulher. Mais nada.
A outra coincidência é que logo ontem, numa disciplina que ofereço de Poesia e Ensaios, estávamos discutindo um ensaio do escritor americano Gore Vidal. Em “Sex and the Law” (Sexo e a Lei), Vidal pergunta se o que é imoral deveria ser considerado ilegal. Ele cita vários exemplos: masturbação é vista como imoral por um monte de gente. Baseando-se nos valores dessas pessoas, masturbação deveria ser punida por lei?
Vidal aponta para o passado dos EUA para explicar essas anomalias moralistas. No século 17, puritanos deixaram a Inglaterra porque sentiam que não tinham muita liberdade religiosa por lá. Eles não eram perseguidos pelas convicções religiosas que tinham, mas eram proibidos de perseguir outros pelas convicções religiosas que tinham. Sonhavam com uma teocracia. Tentaram ir pra Holanda, que os expulsou. E aí lhes restou a América. Foram pra lá, montaram vilarejos, e passaram a perseguir uns aos outros por heresias, bruxarias, e mau comportamento sexual. Os americanos de hoje são descendentes desses puritanos. Qual a nossa desculpa aqui na América do Sul?
Vidal diz mais. Ele conta que adultério, tido como imoral, também era visto como criminoso. Em 1948, 242 pessoas em Boston foram presas por adultério. Acredita? Mais da metade dos estados americanos tinha leis contra casamento interracial. Um negro podia ser preso se transasse com uma branca, porque isso, além de imoral, era também considerado ilegal. Sexo anal e oral também eram proibidos por lei. Não só para pessoas do mesmo sexo, mas também para pessoas do sexo oposto. Ou seja, se marido e mulher cometessem sodomia, essa prática imoral que você e seu namorado fizeram, poderiam ir pra cadeia!
Claro que aquilo era letra morta e poucos eram presos por conta disso. Mas Vidal alerta do perigo que é ter leis contra crimes morais, mesmo que essas leis raramente sejam usadas. Porque elas podem ser usadas contra inimigos de vez em quando.
O chocante mesmo é que esse ensaio do Vidal, que pareceu tão atual ontem, quando todo mundo estava vasculhando a sua vida sexual, Karina, é de 1965. É mais velho que eu! Já já o ensaio completa meio século. Naqueles tempos pré-revolução sexual e pré-feminismo, homossexualidade era considerada doença, e casamento interracial, sodomia, felação e adultério eram considerados crimes.
Ainda bem que a gente evoluiu! Ainda bem que a gente soube separar igreja e estado, e impediu que uma moralidade religiosa tacanha continuasse sendo lei no nosso dia a dia. Ainda bem que hoje somos sexualmente livres, e que moças e rapazes, de qualquer orientação sexual, podem fazer sexo consensual sem serem julgados e condenados por um júri popular!
Ainda bem, porque já pensou se você tivesse nascido cinquenta anos atrás? Suas fotos, seu nome, seu endereço, estariam sendo espalhados por aí. E você seria condenada por ter feito sexo anal e oral com seu namorado. Ah, e teve o lance do adultério também! Provavelmente seu namorado sairia livre, porque ele é homem, mas pra você, Karina, sobraria a pena de morte. Você seria executada em praça pública!
Mas felizmente estamos no século 21, e hoje todo esse obscurantismo sexual e religioso parece coisa da Idade Média.
Karina querida, não se desespere. Tudo isso vai passar. Cabeça erguida, que você não fez nada de errado, e ninguém tem nada que te julgar. Que se danem os moralistas. Você é muito melhor do que eles.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

TOMARA QUE SEJA MENINO

Foi a sempre antenada Valéria que me passou esta notícia triste: “Mãe engana até cartório e cria filha como se fosse menino em Goiás” (veja o vídeo). Uma mãe falsificou o documento de nascimento da filha e conseguiu registrá-la como Samuel. Depois que a tia da menina (com menos de dois anos) tirou sua roupa e viu que ela não era um Samuel, a mãe perdeu a guarda da criança, pelo menos enquanto for julgada.
O que chama a atenção é como a menina aparece na reportagem -– coberta de rosa dos pés à cabeça, como se estivesse sendo recondicionada a ser mulher. A matéria também fala que ela recebeu “brinquedinhos femininos”. Porque, né?, deus proíba que ela cresça sem aprender a dar papinha a uma boneca ou limpar a casinha! Aí sim seria um trauma irreversível!
Parece que a mãe quis criar a menina como menino porque ela, a mãe, havia sofrido abuso sexual na infância, e queria proteger a menina do mesmo destino. Espero que essa mãe receba tratamento psicológico e possa criar a criança. É meio evidente que a mãe não cometeu a fraude para prejudicar a filha, e sim para protegê-la. E, se a gente pensar nas nossas histórias de horror -– não sei se toda mulher tem uma história de horror pra contar, como eu já disse algumas vezes, mas a maior parte de nós certamente tem -–, verá que só o fato de nascer mulher já nos coloca em situação de risco.
Este caso me lembrou de outros. Um documentário lançado este ano diz quais são as palavras mais fatais do mundo. São “É uma menina”. Essas três palavrinhas valem uma sentença de morte em vários países do planeta, onde ser mulher é visto como uma irreversível desvantagem social e econômica. Segundo as Nações Unidas, existem aproximadamente 200 milhões de meninas “desaparecidas” no mundo. Há indícios que Índia e China eliminam mais crianças do sexo feminino que o número de meninas nascidas nos EUA a cada ano. O distrito chinês com o pior número tem 163 meninos registrados para cada 100 meninas. Taiwan, Coreia do Sul e Paquistão também são países em que meninas não desejadas são abortadas, assassinadas ou abandonadas.
Como sabemos, genocídio é a matança de um grupo específico. E estamos falando de um grupo, mulheres. É um genocídio secreto dirigido a um só gênero, um generocídio.
E é um crime muitas vezes perpetrado por mulheres, no ambiente doméstico. Sabe como só gerar filhas colocava em risco a vida das esposas de Henrique VIII, lá pelo século 16? A mesma coisa continua acontecendo hoje em vários países. Na Índia, várias mulheres que não conseguem gerar um herdeiro são espancadas, estupradas ou mortas para que o marido possa casar com uma mulher mais “produtiva” (em outras palavras, que seja capaz de parir um varão).
Muitas vezes se fala que essa discriminação por gênero acabaria se a pobreza desses países diminuísse. Mas não é verdade que pobreza gera feminicídios. Na África e no Caribe, por exemplo, não há registros da prática de matar bebês meninas. E boa parte do infanticídio feminino em países como Índia e China acontece justamente em famílias com mais dinheiro, que têm acesso a ultrassom para verificar o sexo do feto e a clínicas onde possam fazer um aborto (fui informada que ultrassom é proibido na Índia, justamente para que pais descubram o sexo do feto). Aliás, abortar o sexo que não convém não é uma prática tão incomum nas nossas clínicas de fertilidade aqui no Brasil. Mas esse é um assunto pra lá de polêmico que merece um post só pra si.
Na China, onde durante muito tempo só se podia ter uma criança por casal, até dá pra entender (jamais justificar) por que os pais não iam querer que essa chance única gerasse um ser que traga tantas desvantagens. Mas, na Índia, onde não existe essa restrição, os motivos para não se querer meninas são que em geral elas não irão trabalhar e precisarão casar através de dote. Ambas são sociedades patriarcais, como a nossa, por sinal. E como todas as sociedades ocidentais. Ainda que a prática de matar meninas seja proibida por leis, ela persiste entre a população.
Antes que gente desprovida de inteligência venha dizer que estou me contradizendo por apoiar a legalização do aborto e condenar a prática do aborto quando o sexo do bebê não é o desejado, explico: o corpo é da mulher, e é ela que deve escolher quando quer ter o filho (lembrando que métodos que impedem a gravidez são sempre muito menos traumáticos que um aborto). Mas, nesses casos de aborto seletivo, por gênero, há uma imposição social para que a mulher aborte. Ou seja, é pra se pensar se ela realmente tem escolha. Assim como eu seria contra maridos, namorados ou pais que forçassem uma mulher a abortar, sou contra a imposição de uma sociedade para que seja feito o aborto seletivo. É totalmente diferente você querer reproduzir, e então abortar caso não saia o resultado desejado (um menino) de não querer reproduzir e engravidar sem querer, e aí abortar.
Em outros países não há assassinato de meninas, mas a situação é tão desfavorável às mulheres que trocar de sexo passa a ser uma solução. Na Albânia, há mulheres que fazem um voto de castidade para poder se vestir e viver como homens numa sociedade patriarcal. Só assim essas mulheres conseguem obter vantagens não cabíveis para mulheres, como recusar um casamento arranjado ou herdar as posses da família. Enfim, ter alguma liberdade.
No Afeganistão, muitas famílias que só têm filhas reservam a uma delas o papel de homem. Essa filha será vestida como menino (Bacha Posh) desde o início de sua vida. Desta forma, além de proporcionar status à família, que aos olhos da sociedade têm um garoto, esta menina vestida de menino protegerá suas irmãs. Ele usufruirá de uma vida proibida às mulheres, como ir à escola, viajar, praticar esportes, e ter um emprego. Só que todos esses privilégios serão válidos somente até que ele atinja a puberdade.
A partir daí, ele terá que se vestir e comportar como mulher. Inclusive, terá um casamento arranjado como as outras mulheres. Mas imagine a dificuldade que é ter de abrir mão de seus privilégios e voltar a ser o gênero discriminado. A maior parte dos Bacha Posh não quer retornar a ser mulher, porque viu como mulheres são tratadas. Um deles diz: “As pessoas usam palavras de baixo calão com as meninas. Gritam com elas nas ruas como se fossem bichos. Quando vejo isso, eu jamais penso em voltar a ser uma menina. Quando eu sou garoto, eles não falam comigo assim”.
O mesmo sistema patriarcal que abusa sexualmente de meninas e comete feminicídio também não é nenhuma garantia de felicidade pros meninos. Homens adultos são vítimas de mortes violentas em número muito maior que mulheres. A diferença é que quase sempre homens são mortos por outros homens. Portanto, o que precisa ser jogado na lata de lixo da história é o patriarcado, que insiste num modelo de masculinidade autoritário, violento, insensível, e nocivo para todo mundo, um modelo que só começou a ser questionado nas últimas décadas. Se um dia formos capazes de derrubar o sistema, meninas deixarão de ser mortas por serem meninas. E nenhuma mãe sentirá ser preciso falsificar o sexo de sua filha para protegê-la de abusos. Tomara que este dia chegue logo.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

"EU FUI ESTUPRADA?"

B. me enviou este relato. E eu sei que o tema é polêmico e que vai me render algumas pedradas, mas pedi permissão para publicá-lo mesmo assim.

Email da B: Há anos uma dúvida me intriga muito e tenho certeza de que muitas mulheres também têm a mesma dúvida.
É muito fácil saber quando um estupro é um estupro em casos extremos: quando há violência, recusa, reluta, choro, grito e dor. Mas em casos menos extremos, como a gente sabe? Como a gente classifica? Existe uma gradação que torna alguns estupros mais "aceitáveis" do que outros? Eu fui estuprada?
Há cinco anos, aproximadamente, no dia em que voltei ao Brasil depois de ter morado um tempo fora, um amigo meu me chamou para ir a sua casa para tomarmos uma cerveja. Aceitei, é claro. Ainda não tinha visto nenhum amigo desde que havia voltado e estava com saudade deles.
Já na casa, conversa vai conversa vem, cerveja vai cerveja vem, ele começa a me beijar. Eu jamais teria cogitado ficar com ele, porque ele era um cara com uma aparência meio esquisitona e eu jamais tinha sentido atração por ele. Eu virei a cara e disse que isso era muito estranho. Ele puxou de novo meu rosto, disse que "estranho é bom" e tornou a me beijar. Ele então me encaminhou para o quarto e eu fui, meio relutante. Eu não sabia o que pensar da situação; eu estava bêbada e não sabia se queria isso ou não, então meio que me deixei ser levada pela situação, embora eu transparecesse estar desconfortável e hesitante. Ele me deitou na cama e começou a tirar minha roupa. Eu tapava meus olhos com as mãos e ficava repetindo que era muito estranho, mas não fazia nada para fazer com que ele parasse. E eu tampouco incentivava o sexo ou demonstrava tesão. Tenho a impressão de que eu dizia "não, não", às vezes, com os olhos tapados, mas já não tenho mais tanta certeza disso. Depois que acabou, eu coloquei minha roupa e fui para a casa. Chorei um pouco no caminho e me senti abusada.
Eu fui de fato abusada?
Embora eu saiba que ele não agiu da forma mais correta, eu também sei que ele não fez por mal. Eu sei que se eu tivesse dito um "não" mais categórico ele teria parado, porque ele é uma das pessoas mais gentis e respeitosas e queridas e prestativas que conheço. Talvez se eu não tivesse bebido eu teria dito "não" de início e ele teria respeitado. Talvez se ele não tivesse bebido ele teria levado em conta meu claro desconforto com a situação e teria parado. Talvez, por ser uma pessoa socialmente diferente e por provavelmente ter tido poucas experiências sexuais, ele tenha agido mal por não saber como agir. Por não saber o que, nessas horas, era errado. Isso torna o ato dele mais aceitável? Sempre penso que a culpa é minha, que eu deixei acontecer, que ele achava que eu estava querendo que acontecesse. Será que ele achava isso mesmo? Será que ele se aproveitou da minha falta de ação na hora e propositalmente não impediu o sexo, embora percebesse que eu não queria? Ou ele não percebeu que eu não queria? Nunca sei exatamente o que achar disso tudo.
Ficamos mais ou menos um ano sem nos falar, e depois aos poucos voltamos a ser amigos e hoje somos grandes amigos de novo. Até ficamos de novo por pouco tempo, no ano passado, e eu, enquanto ficávamos, pela primeira vez toquei no assunto daquela noite, mas sem mostrar que eu o culpava de abuso nem nada parecido. Ele disse "naquele dia eu fiz tudo errado, tudo errado...".
Eu deveria ter sido mais dura com ele? É muito estranho que eu tenha voltado a falar com ele sem guardar rancor? Eu deveria guardar rancor? Eu deveria sentir nojo dele? Eu deveria tê-lo denunciado? Teria sido "overreaction" se eu o tivesse denunciado? É um sinal de submissão o fato de eu achar que ele não tem culpa de nada porque eu sei que ele não tinha a intenção de me abusar, embora tenha, de certa forma, me abusado? Devo soar como uma daquelas mulheres submissas e apaixonadas que encobertam violência e abuso domésticos. Mas eu realmente não desconfio do caráter desse meu amigo. Ele é uma boa pessoa e acho que o que aconteceu foi só um erro.
Mas quão grave é esse erro?
Como eu deveria ter reagido?
Como posso categorizar esse acontecido?
Me soa duro demais dizer que foi estupro. Mas será que foi? Se não foi, foi o quê?
Essa situação me deixou extremamente confusa. E imagino que essa confusão deva estar presente na cabeça de muitas, muitas mulheres.
Às vezes me sinto uma idiota por pensar que foi estupro; às vezes me sinto uma idiota por pensar que não foi estupro.
Como é que reconhecemos um estupro, nesses casos menos extremos?

Minha resposta: Bom, em primeiro lugar quero dizer que sinto muito por vc estar passando por essas angústias todas.
Em segundo lugar, é muito difícil eu dizer se o que aconteceu entre vc e seu amigo foi estupro ou não. Se nem vc sabe!
Todo estupro é inaceitável, é claro. Mas tem aqueles (que geralmente são os únicos que são punidos, e mesmo assim sempre se duvida da vítima) em que resta pouca dúvida. É quando o estuprador segue o clichê de "desconhecido numa rua deserta à noite". Se há muita violência física, de ferir a vítima, as pessoas tendem a crer que houve estupro. 
Em quase todos os outros casos, a maior parte das pessoas costuma achar que não. E na maior parte dos casos o estuprador é conhecido/amigo/familiar etc. E acontece em casa, não na rua! A maior parte desses estupros não é sequer denunciada. E me diga se uma violência direta, ou a ameaça dessa violência física, é necessariamente pior que uma ameaça do tipo "se vc não transar comigo vou procurar a sua irmã"? Ou "se vc não deixar eu te mato", vindo de um conhecido?
Eu acho que "meio que ser levada pela situação" não é estupro. Estupro é sexo sem consentimento. Vc não consentiu, mas vc também não recusou. Vc não disse "não" categoricamente, e vc não tem certeza se disse "não, não". Acho que seu amigo foi um babaca por não levar um "não" tímido ou um "isso é muito estranho" mais a sério, e acho que muitos homens fazem isso (e são ensinados a fazer), mas não que seja necessariamente estupro.
Uns dois ou três anos atrás aparecia uma comentarista meio chatinha no meu blog. A gente discordava sobre tudo. Em geral, ela era muito mais "suave" no seu feminismo do que eu, mas, quando o assunto era sexo, ela era categórica: ela achava que fazer sexo quando não se queria era estupro. Tá, parece óbvio. Concordo. Mas esse "não querer" é relativo, não acha? Por exemplo, vc tá com seu namorado, e ele quer transar, e vc não. Mas ele vai fazendo uns carinhos e vc, mesmo sem estar a fim, acaba transando com ele. Eu não consideraria isso estupro de jeito nenhum. Mas essa minha leitora considerava.
Eu já fiz sexo algumas vezes sem estar com vontade. Mas ainda assim foi consentido. Pra mim é diferente transar sem vontade de transar sem consentimento. Quando transei sem estar muito a fim, fiz pra agradar. A gente (qualquer um) faz um monte de coisa pra agradar na vida, e muitas dessas coisas a gente faz sem vontade. Meu marido também já transou comigo sem ele estar com muita vontade. Não consigo ver nada disso como violência.
E quanto a transar com caras que eu nunca pensei em transar, mas aí ele começou e eu fui deixando pra ver como seria (mesmo achando estranho), bom, já aconteceu algumas vezes também. Se bem que eu não disse "não" e nem estava bêbada... Sabia muito bem o que estava acontecendo, mas não tinha certeza mesmo se queria transar com aquele cara ou não. E fui deixando. E nesses casos quase sempre o sexo é muito ruim, não é? Pelo que me lembro...
Eu concordo com todos os "talvez" que vc colocou naquele parágrafo. Talvez se vc tivesse dito um não mais categórico, seu amigo teria parado. Talvez se ele não tivesse bebido, ele levaria o seu suave não mais a sério. Isso não torna o comportamento dele mais aceitável (continuo achando que ele agiu feito um idiota insensível e egoísta naquela noite -- o ideal seria que no primeiro "não", na primeira hesitação, a pessoa parasse na hora), mas tampouco faz dele um estuprador.
Eu acho que vc mesma dá a resposta quando diz "Eu sei que se eu tivesse dito um 'não' mais categórico ele teria parado, porque ele é uma das pessoas mais gentis e respeitosas e queridas e prestativas que conheço". Se vc sabe disso, tem certeza disso, vc tem a sua resposta.
Se vc deveria tê-lo denunciado, mesmo com tantas dúvidas? NÃO. Mesmo que a enorme maioria das acusações de estupro não gere condenações, estupro é uma acusação seríssima. Se vc tem tantas dúvidas sobre o que aconteceu e sobre o que vc queria e sobre o que vc fez e sobre o que ele fez, vc fez bem em não denunciá-lo.
Eu acho que vc foi muito generosa em não guardar rancor nem ódio dele. Mas acho bom. Se vc guardasse rancor dele, vc provavelmente guardaria rancor de vc também, por não tê-lo denunciado, por achar que a culpa foi sua... Essa parece ser uma amizade importante pra vc. Não estou dizendo, de jeito nenhum, que se vc tivesse certeza que foi estupro, vc não deveria denunciá-lo pra salvar a amizade. Num caso desses dane-se a amizade, ele tem que ser denunciado sim! Mas esse não parece ser o caso que vc narrou.
Eu não sou a dona da verdade, então não posso responder categoricamente à nenhuma das suas perguntas. Mas não acho que vc esteja sendo submissa por perdoá-lo e por não guardar rancor. E não existe uma reação certa. Existem muitas reações. Se isso acontecesse novamente, com esse mesmo amigo, vc muito provavelmente reagiria diferente, não? Ou não dá pra saber? Ou depende do dia? Se algo parecido acontecesse com outro amigo, vc também agiria diferente. Mas não existe uma forma correta de agir. Quer dizer, talvez o seu amigo deva saber que a forma como ele agiu não foi correta de jeito nenhum. Mas, como eu disse, nem por isso foi estupro.
Querida, acho que vc não tem que ficar se martirizando. Faz muito tempo (cinco anos, né) que isso aconteceu, vc não tem certeza de nada, vc e o cara são amigos, vc acha que ele é um cara legal... Na dúvida, considere que não foi estupro. E se não foi estupro, foi o quê, vc pergunta? Não sei, uma noite péssima? Uma transa que vc não tinha vontade nem sentiu prazer? Só sexo ruim, mas sem nada de violência? Acho que é forte demais vc marcar isso como estupro e ter que carregar esse fardo. Porque vc tem muito mais dúvidas do que certezas!
Se vc quiser falar com seu amigo sobre isso, porque isso ainda te incomoda (e dá pra ver que te incomoda), tente conversar com ele. Sem brigas, sem acusações, só tentando explicar pra ele as suas dúvidas e porque isso te perturba e porque vc acha que ele agiu errado naquela noite. E, se vc quer desculpas, exija desculpas. Ele dizer que "fez tudo errado" não é um pedido de desculpas.
Não tem uma fórmula certa pra reconhecer se foi estupro num caso assim. Vai muito da pessoa. É a pessoa que se sente mal que tem que manifestar o tamanho do seu sofrimento. E, baseado nisso, denunciar ou não seu amigo. Claro que a gente aprende que casos assim não são estupro, e a gente faz um esforço danado pra se convencer disso, e muitas vezes, anos mais tarde, a gente acha que foi, sim. É uma reação bastante comum. Mas vc não concluiu nada. 
Lembre-se que estupro tem mais a ver com demonstração de poder que com tesão. O cara que estupra raramente é um cara que não consegue controlar seu desejo; é um cara que quer usar sexo pra mostrar quem manda, pra humilhar. Pelo que vc narra, essa não parece ter sido a atitude do seu amigo.
Não sei se este email gigantesco mais te ajuda ou atrapalha. Mas espero que vc chegue as suas próprias conclusões, se é que já não chegou a elas ainda.

B responde: Acho que você tem toda a razão. Não foi um estupro. Foi uma transa ruim, numa noite ruim, numa situação de vulnerabilidade emocional. Pior do que qualquer outra experiência sexual que eu tive e que pudesse ter sido caracterizada da mesma forma, isso foi. Mas não foi estupro. E eu acho que já estava convencida disso antes mesmo de você me responder (como você mesma já notou), mas acho que eu precisava ouvir isso de uma pessoa que não tivesse tido um envolvimento tão pessoal quanto o meu. Ouvir isso de uma pessoa imparcial me dá mais segurança sobre meu julgamento. Porque estou cansada de saber de histórias de estupro que são amenizadas pelas próprias vítimas por causa do seu envolvimento com o estuprador. E tinha medo de achar que talvez eu fosse uma dessas pessoas. Medo de achar que era só eu contar o acontecido a uma pessoa qualquer, mesmo com todos os meus "talvez", que essa pessoa qualquer poderia tê-lo rotulado facilmente como um estupro, embora eu mesma não me convencesse disso. Não foi o caso. Fico feliz por isso, embora eu fique triste por perceber que carreguei essa dúvida por mais tempo do que eu precisava.
Se tem uma coisa que qualquer mulher numa situação semelhante tem que fazer é dividir isso com alguém. Relatar. Perguntar. Ouvir. Abrir-se sem manipular os fatos por proteção. Dá mais forma ao acontecido e às vezes resolve coisas que, sozinha, a gente não resolve nunca.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

TODA MANEIRA DE AMOR VALE A PENA

Pessoas queridas, em abril a editora Primeira Pessoa entrou em contato comigo me oferecendo dois exemplares de um livro -– um pra mim, e um pra alguma leitora ou leitor que eu escolhesse. Como a temática era interessante, aceitei. Só que, lógico, com a minha proverbial falta de tempo, levei meses pra ler Toda Maneira de Amor Vale a Pena, de Bety Orsini.
O livro é muito bom e pode ser facilmente encontrado por 25 reais em várias livrarias. A autora narra vinte relatos de como pessoas de diversas profissões, raças, classes sociais e religiões lidam com sua homossexualidade. Ou seja, como descobriram que eram gays ou lésbicas, quando assumiram, como foi a aceitação (ou rejeição) da família, o que mudou em suas vidas, os preconceitos que tiveram de enfrentar, suas paixões. 
Começa com um personagem famoso: Michael, do vôlei. Lembram dele? Ano passado, em Minas, o jogador de SP, disputando uma semifinal da Superliga Masculina de Vôlei, foi hostilizado pelo público. Numa demonstração patente de homofobia, o ginásio em coro passou a gritar “Bicha! Bicha” toda vez que Michael chegava perto da bola. Ele foi tirado do armário à força. Bom, em termos. Sua equipe sabia que ele era gay, sua família também, mas ele, discreto, nunca tinha se assumido publicamente para todo o país. As entrevistas que deu tiveram grande repercussão, e ajudaram a espalhar a tolerância. E, por que não?, a encher de vergonha os espectadores que participaram da demonstração de homofobia coletiva.
Há outros casos de pessoas menos famosas, mas que marcaram momentos importantes na luta LGBT, como o artista Evandro que, em maio de 2010, recebeu a primeira pensão concedida por morte de pessoa do mesmo sexo em processo administrativo aprovado pelo INSS em todo o Brasil. Seu parceiro havia morrido de câncer, e Evandro passou a receber um salário mínimo de pensão. Diz ele: “Não preciso desse salário para viver, preciso dele apenas para mostrar que esse amor existiu e foi reconhecido”.
Um casal gay interracial, Carlos e André, conseguiu adotar duas meninas que viviam num abrigo. Ao invés de fazerem o que faz a maior parte dos casais gay que tenta a adoção -– obter a guarda para apenas um dos pais -–, Carlos e André conquistaram o direito de adotar de forma compartilhada. Por conta disso, são geralmente chamados para palestras.
Já Suzana e Gy, consultoras financeiras, Gy grávida de um filho, uma vez foram a um restaurante no Rio com os pais de Gy. Como na entrada estava escrito “Casal janta conosco e mulher não paga”, exigiram duas promoções. Mas o garçom rebateu que a promoção era pra “casal normal, de homem e mulher”. Elas ameaçaram entrar na justiça por discriminação, e o garçom pediu para que elas se beijassem, para provar que eram um casal. Mais adiante, se desculpou e as serviu muito bem.
Tem também o depoimento politizado de Andre Fischer, que tem um blog no site Mix Brasil, o mais antigo portal gay do Brasil. Pergunta ele: “Por que Zapatero, no primeiro mês no poder, aprovou o casamento gay na Espanha? Porque sabia que era uma questão emblemática de defesa dos direitos humanos. Foi o que aconteceu na Argentina. Não é que a Cristina Kirchner seja ultrassimpatizante. Ela quis levantar a bandeira para dizer: 'Aqui os direitos são respeitados'. Quanto mais avançados a sociedade e o país, mais os gays são inseridos. Garantir o direito de quem é homofóbico é loucura!”
E por aí vai. 
É muito gostoso poder ler todas essas histórias de pessoas simpáticas, guerreiras, com experiências tão diferentes. E o livro está bem escrito.
Então, para escolher quem receberá este belo presente de natal, vou fazer algo inédito: um sorteio! Quem quiser participar deve deixar um comentário na caixa deste post. Só isso. Podem ser os mesmos comentários maravilhosos que vocês escrevem sempre, não precisa ser nada específico. 
Vou fazer o sorteio amanhã, às 10 horas da noite (horário de Fortaleza), usando o Random.org, que escolherá um número aleatório pra mim. Pessoas que comentarem mais de uma vez, só vai contar um dos comentários, ok? E, neste sorteio, vou considerar apenas as pessoas que comentam com um nome ou um avatar. Em outras palavras, não pode ser anônimo. Aí eu vou colocar o nome que o Random escolheu, e a felizarda ou felizardo (o número do comentário) terá que me mandar o endereço para que a editora envie o livro pra elx.
Vamos lá, participem! É meu primeiro sorteio em quase cinco anos de blog (pão dura miserável, eu?). E o livro super vale a pena!
UPDATE 28/11: Sorteei, pessoas lindas! E o número que o Random escolheu foi 94. Que, pela minha listinha, é a Lais Flores. Parabéns, Lais! Por favor, me mande um email com seu endereço. 
Foram 303 comentários, dos quais concorreram 298. Muito obrigada pela participação! Agora que muitxs de vcs perderam a vergonha e comentaram pela primeira vez, seus interesseiros e suas interesseiras, não sumam. Comentem sempre! Não dói. Daqui a uns dias ou semanas (quando sair a segunda edição) eu sorteio um exemplar do meu livro. E volta e meia eu recebo alguns livros por aqui. De agora em diante, vou sempre pedir pra editora me mandar dois livros, assim eu posso sortear um entre vcs. 
Ah, e vcs que não ganharam, tirem a mão do bolso e comprem o livro. De preferência pelo Submarino aqui do blog, que eu ganho uma comissão mínima (5% ou 8%? Aliás, o Submarino tá pagando?). Abração!
UPDATE 16/12: Como a Lais não se manifestou de lá pra cá, e não posso ficar esperando pra sempre pra enviar o livro, vou realizar um outro sorteio agorinha. 
E o número vencedor foi... 149! A vencedora agora é a Lorena (não é a mesma Lorena do número 49). Por favor, entre em contato comigo por email e me envie seu endereço, para que eu possa pedir pra editora te enviar um exemplar do livro. Se a Lorena não se manifestar até 26/12, terei que fazer um outro sorteio...