quinta-feira, 31 de outubro de 2013

REAÇAS SE OFENDEM AO SEREM CHAMADOS DE REAÇAS

Por onde começo? No início do mês, Danilo Gentili, no seu programa "Agora é Tarde", da Band, fez piada com a maior doadora de leite materno do Brasil, a técnica de enfermagem Michele Maximino, habitante de uma cidadezinha em Pernambuco. 
Gentili começa falando do recorde da pernambucana, que doou mais de 300 litros de leite. Corta para outro humorista, Marcelo Mansfield, que segura um copo de leite e imediatamente faz cara de nojo. Continua Gentili: "Em termos de doação de leite, ela já tá quase alcançando o Kid Bengala" (um ator pornô). Mansfield: "Gente, qual o tamanho das teta?" "Tem a foto dela aqui!", entusiasma-se Gentili. E mostram a foto. Alguém grita "Uau!". Mansfield: "Gente, isso não é uma espanhola, é uma América Latina inteira!" 
Gentili ia fazer uma outra piada, mas Roger, ex-Ultraje a Rigor, hoje mais conhecido por ser um reaça de marca maior, o interrompe para dizer a Mansfield que a Espanha fica na Europa. Segue-se uma explicação da piada. "Põe a foto dela de novo", pede Gentili, que diz, "Está ela em cima, Plutão e Saturno logo abaixo". E continua: "Depois de ela ver que não ia ganhar nada doando leite ela decidiu vender, olha". E a edição mostra uma imagem de Leite Moça com a foto dela. 
Em um minuto e meio de TV, é possível fazer muito estrago. Pessoas na rua passaram a chamar Michele de "vaca" e "vaca do Gentili". Agora ela consegue retirar apenas 600 ml de leite por dia. Antes, eram dois litros. Um de seus peitos secou. Ela está pensando em parar de doar. Na semana passada, ela ingressou com uma ação na Justiça contra Gentili, Mansfield, e a Band. 
Por enquanto, a 2a Vara Cível de Olinda determinou que a Band pague uma multa de R$ 5 mil por dia enquanto o trecho do programa não for removido da internet. O advogado de Michele está pedindo indenização de um milhão de reais (pedir é uma coisa, conseguir é outra, e o Brasil não costuma dar altas indenizações).
Agora o que mais tem é gente chamando Michele de interesseira, e tratando o pobre Gentili como vítima do politicamente correto, que não permite nem que ele ridicularize uma pessoa em rede nacional faça humor (entenda como somos condicionados a ficar do lado dos mais fortes contra os mais fracos). Todo mundo sabe quem é Gentili, mas vamos falar um pouco de Michele. 
Ela tem dois filhos, um menino de 3 anos, e uma menina de 1 ano e 4 meses. Michele doa leite desde que a caçula, que ainda é amamentada por ela, tinha 7 meses. Todo dia, Michele esterilizava os potes, fazia a coleta do leite, e, junto com o marido, dirigia 80 km para levar os potes até uma maternidade em Caruaru -- sua doação era responsável por 90% do estoque do banco de leite daquele hospital. 
E tudo isso era uma doação. Um ato de amor a desconhecidos, já que esse leite é destinado aos bebês prematuros da UTI. Ao contrário do esperma do Kid Bengala, leite materno salva vidas. Foi quando nasceu a filha prematura de Michele que a técnica viu a importância da doação de leite humano. 
Não sei quanto a você, mas no meu livro, Michele é uma heroína. Ela salvava vidas, e salva ainda, e torço para que continue salvando (você pode deixar uma mensagem de apoio pra ela aqui). Mas vivemos num mundo em que uma pessoa dessas não é elogiada, e sim esculhambada por um programinha na TV aberta. Tudo em nome do humor. E em nome disso, a gente sabe, vale tudo. E ai de quem reclamar! Se você é mulher e reclama, invariavelmente será chamada de mal comida sem senso de humor e castradora da liberdade de expressão. Pois é, gente como Gentili, pobre alma, não tem liberdade de expressão! Quem tem vasta liberdade de expressão são as feministas, que contam com inúmeros programas de TV e colunas nos grandes jornais pra se expressarem!
Humoristas como Gentili e seu sócio numa casa de shows, Rafinha Bastos (e tantos outros), têm um humor, como diremos, peculiar. Eles adoram posar de transgressores, de moderninhos, mas seus chistes são os mesmos feitos por meninos na quinta série. Meninos que têm nojinho de meninas e então ficam obcecados por peitos. Meninos que veem peitos como um objeto sexual, e que quando descobrem que peitos têm outra função, como amamentar, comparam mulheres a vacas, chamam seios de tetas. 
Vou repetir: as piadas que esses comediantes tão originais ganham tão bem pra fazer já eram contadas por seus tataravôs. Lembra do Rafinha rindo das mulheres que amamentam em público, chamando essas mães de barangas exibicionistas, exigindo que coloquem um pano para cobrir suas "muchibas", né? Essas piadas têm alvos muito bem definidos. São sempre mulheres, homossexuais, negros, transsexuais, gente com necessidades especiais, nordestinos, pobres... 
Quando um sujeito é reaça, ele vai se manifestar sendo reaça, simples assim. Não vem um carimbo escrito "reaça" na testa. É o que o cara diz, como ele age, como ele reage, que vai determinar sua ideologia. Gente preconceituosa como Gentili e cia. vai fazer humor preconceituoso, humor que perpetua os preconceitos, nunca humor que queira derrubá-los. O humor é um tipo de discurso como qualquer outro. E, como tal, pode ser (e geralmente é) preconceituoso. 
O irônico é que muitos desses humoristas que se escondem por trás do velho "É só uma piada" querem ser levados a sério. Afinal, se eles vivem repetindo que "é só uma piada", é sinal de que eles não acham que humor é grande coisa. Portanto, Gentili nunca quis reservar todo o seu reacionarismo só para o humor. Ele tem ambições políticas (marque minhas palavras). Ano que vem, pleno ano eleitoral, esta criatura sem liberdade de expressão terá um programa para falar de política na Fox. A cereja no bolo é que o programa não estará sujeito à legislação brasileira de horário eleitoral gratuito. 
E vejamos, qual será a linha política de Gentili? Puxa, é difícil imaginar... Será que ele é esquerda, direita, centro, ou adepto do "isso de esquerda e direita não existe mais!" (frase sempre dita por gente de direita)? Mas vamos dizer que ele usa termos como petralha. E que ele se aproximou faz tempo de um dos maiores gurus reaças do Brasil, Olavo de Carvalho (quando Olavão me xingou porque eu disse que os mascus o idolatram -- did I lie? --, Gentili deixou um longo calvário no FB de Olavão me xingando de tudo e dizendo que eu o persigo desde que eu escrevia na Veja, sendo que eu, ahn, nunca sequer assinei essa revista, muito menos fui contratada por ela). Esses últimos dias, Gentili se esbaldou: participou de um hangout com Olavão e Lobão, e de um podcast para o Instituto Mises. Nesse podcast, Gentili dispara opiniões como "Tudo que vem do estado é uma m*rda! De funcionários à estrutura! Por isso sou anti-estado". 
Bem tarde na noite de segunda, eu estava falando de tudo isso no Twitter quando uma moça perguntou o que era Mises, porque ela nunca tinha ouvido falar. Eu respondi: "É um instituto ultraconservador, nojentão", e passei o link pro podcast do Gentili (coisa que não vou fazer aqui, mas é facílimo encontrar no Google). Um rapaz veio argumentar que o Mises não era conservador, e respondi, sem tempo:

Pronto. Foi o suficiente para uma revoada de reaças poluir o meu Twitter. Todos dizendo que não são reaças.  
Eu acho engraçado como reaças odeiam ser chamados de reaças. Eles não se assumem. São poucos os caras de direita que batem no peito e dizem, sim, sou de direita! Pelo menos essa batalha cultural a esquerda ganhou -- ser de esquerda é ser revolucionário, é querer mudar o mundo. E ser de direita é ser um coxinha conservador. 
Como pega mal ser conservador hoje em dia, algumas pessoas de direita inventaram um termo melhorzinho: libertarian. Na realidade, era liberal, mas nos EUA há uma confusão entre os termos. Liberal pra eles é diferente que pra nós. Pra eles, é gente que defende causas sociais como legalização do aborto, das drogas, do casamento civil gay etc. Pra nós, liberal está ligado à economia. 
Por isso, hoje se fala em libertarianismo e libertários, que é um termo bonito, chique, que tem na palavra liberdade sua raiz. Libertários amam espalhar diagramas como este pra "provar" que não são nem esquerda nem direita, muito pelo contrário.

Não precisa ser um gênio pra saber que, no espectro político, há liberais e conservadores, ou esquerda e direita, tanto na área social quanto na área econômica. De maneira geral, quem é de esquerda é de esquerda em tudo -- quer intervenção na economia, um estado forte, e liberdades individuais, o que inclui a luta pelos direitos de grupos historicamente oprimidos. Já pra quem é de direita, varia. Tem conservador que é conservador tanto na área social quanto econômica, e tem conservador só na área econômica. Esses últimos, na teoria, não na prática, seriam os libertários (pra você saber onde vc se encaixa, aqui tem um teste da Veja. Eu fiz faz tempo, e me situei na extrema esquerda. Aqui tem o Political Compass, bem mais completo, só que em inglês).
Eu chamo conservadores de reaças. Mas é o seguinte: conservadores não querem conservar tudo, só algumas coisas que lhes interessam. Conservadores também querem mudanças. Por exemplo, muitos conservadores gostariam que o aborto fosse proibido em todos os casos, inclusive no de estupro, algo que faz parte do nosso Código Penal desde 1940. Aborto, por sinal, é um dos temas que mais dividem libertários.
Os próprios libertários sabem que são constantemente "confundidos" com conservadores. Muitos conservadores os chamam de "marxistas de livre mercado" (ha ha, visualize Marx se revirando no túmulo), ou "o marxismo da direita". Essas duas citações eu tirei do Mises:
"Embora a expressão libertários denote o alto apreço pela liberdade que esse grupo possui, ser pró-liberdade não necessariamente significa adotar uma atitude especificamente contrária ao status quo — a menos, é claro, que o status quo esteja limitando ou impedindo a liberdade humana".

"Seriam o conservadorismo e o libertarianismo moralmente opostos um ao outro, ou seria possível ser conservador e libertário ao mesmo tempo?  A resposta a essa pergunta, assim como a resposta para várias outras perguntas, é: depende. Depende principalmente da posição por onde se começa."
Os libertários (cujo grande nome na política é o republicano Ron Paul), em tese, defendem a liberdade absoluta. Ou seja, são a favor da meritocracia (opõem-se às cotas, por exemplo), da preservação de privilégios, da abolição de impostos, e da privatização de tudo, inclusive da educação e da saúde. Detestam sindicatos, porque esses estariam interferindo na livre iniciativa que, como sabemos, se regulamenta tão bem sozinha. Ou seja, libertário é gente que acredita que o problema com o capitalismo não é o capitalismo, mas o Estado que impede que tenhamos um verdadeiro capitalismo. É quem quer submeter a liberdade individual à liberdade de mercado.
E, repito, isso tudo é em tese. Na prática, é bem diferente. Na terça saiu uma pesquisa no Washington Post mostrando que 22% dos americanos se identificam com os princípios libertários, se bem que só 7% são libertários convictos. No entanto, 43% desses libertários se identificam com o Partido Republicano, que tem ficado cada vez mais à direita com o passar dos anos, e só 5% com o Partido Democrata (que é liberal, mas nunca de esquerda). 94% dos libertários, segundo a pesquisa, são brancos. 68% são homens. 62% tem menos de 50 anos. 39% dos libertários se dizem membros do movimento mais conservador que surgiu na última década, o Tea Party.

(Este artigo em inglês é bastante revelador: "A verdadeira história do libertarianismo na América: uma ideologia falsa para promover uma agenda corporativista". Ele cita o papa do liberalismo econômico Milton Friedman como criador do libertaranismo.)
Eu pude sentir o gostinho desse perfil na segunda e terça, quando tive que bloquear uns cinquenta reaças no meu Twitter. Eram praticamente todos homens e brancos. Nenhum me seguia, mas a maioria sabia quem eu era, e já me odiava.
Não é estranho? Eu não tenho programa de TV nem nada. Tenho apenas um blog sem qualquer tipo de patrocínio, e não vivo dele. Sou professora universitária desde 2010. Tenho 46 anos. Trabalho desde os 18. Só nos últimos quatro eu venho trabalhando pro Estado (não pro governo -- há diferença. Se a oposição ao PT for eleita, eu continuarei trabalhando pro Estado), e isso porque, na minha área -- professora universitária de Literatura em Língua Inglesa --, as universidades públicas dão um banho nas particulares. Sou servidora pública, e com orgulho. 

Eu não sou famosa, mas sou amplamente odiada por reaças. Por que será que eles me odeiam? Não é por causa do meu cabelo ou do meu corpitcho. 
Lógico que, com o humor de quinta série que eles veneram, eles gostam de falar mal da minha aparência (insultos da Turma da Mônica: boba, feia, chata). Mas seria fútil pra alguém tão politizado como eles (reaças se acham politizados, vai entender) detestar alguém apenas pela aparência. Eles me odeiam porque sou de esquerda. E porque sou feminista. 
A maior piada da segunda foi ver um reaça escrever que eles, libertários, estão ao lado das feministas. Realmente, pelos insultos que recebi, nota-se.
Pra quem precisa de mais pistas de como libertários são reaças, posso dizer que no Brasil tenta-se criar um partido político chamado Libertários, que se diz "à direita do DEM". Na página do Wikipedia, figuras públicas ligadas ao libertarismo no Brasil incluem Lobão, Luiz Felipe Pondé, e o revisionista histórico Leandro Narloch. Mas eles -- e Gentili e Olavão, tenho certeza -- se ofendem se forem chamados de reaças. 

Contudo, existe um libertário que eu gosto. É o Ron Swanson, do Parks and Recreation. Só que ele é de ficção.
Os outros? Tudo reaça. Reaças que acham hilário atacar mulheres como Michele, a maior doadora de leite do Brasil. Uma heroína.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

GUEST POST: POR MAIS MULHERES AUTORAS DE QUADRINHOS

Beatriz Lopes é esta menina de 19 anos aí embaixo. Tem 19 anos e um sonho: viver de fazer quadrinhos. 
Ela é responsável pela curadoria do Zine XXX e escreveu este post sobre um projeto (que apoio totalmente) e sobre o espaço da mulher no mundo dos quadrinhos.

Eu consumo quadrinhos desde muito cedo e logo de cara percebi que era um mercado predominantemente masculino. As quadrinistas mulheres que eu tenho na minha estante eu posso contar nos dedos. Ano passado comecei a produzir quadrinhos e publiquei a revista Libre com alguns outros quadrinistas (majoritariamente homens). Já é bastante difícil publicar quadrinhos independentes aqui no Brasil, e também esse nicho independente é ocupado especialmente por homens.
Outra questão é o conteúdo das publicações: pelos espaços serem masculinos tanto no mainstream dos quadrinhos quanto no underground, as temáticas quando incluem personagens femininas são de teor machista, depreciativo ou super sexualizado. 
Só quadrinista homem na Feira de F.
E, além de existir geralmente uma grande resistência dos colegas homens quadrinistas para o reconhecimento de seus privilégios e o respeito com as colegas mulheres, no sentido de se recusarem por exemplo a considerar o grave desconforto que certas publicações geram em nós, também há o preconceito de consumir quadrinhos de autoras mulheres por acreditarem num estereótipo de temática "mulherzinha" (portanto necessariamente desqualificada em si, segundo suas mentalidades) e numa suposta falta de dedicação ou competência -- já diria o Maurício de Souza, direto de Frankfurt.
A ideia do projeto surgiu porque eu ia fazer um zine com uma amiga minha, mas em algum momento eu tive um surto megalomaníaco e resolvi que eu não queria fazer esse zine com uma amiga, mas com todas as quadrinistas mulheres do Brasil. Eu coloquei um post no facebook e umas semanas depois tinha um grupo com centenas de meninas de várias idades e lugares postando desenhos que eu nunca tinha visto (e talvez nunca fosse ver). Alguns desses desenhos saíram direto do caderno, e era lindo ver as meninas tão unidas, trocando experiências e se ajudando. Eu particularmente me sentia extremamente insegura no universo dos quadrinhos. Com aquelas meninas, confesso que me senti muito melhor.
Queremos ser as reais protagonistas dos quadrinhos de mulheres para mulheres e para todos, criar personagens fortes como nós, livres das expectativas sexuais e estereótipos que os autores homens costumam atribuir a suas personagens femininas. E a zine XXX vem nesse intuito de abrir espaço e provar principalmente para as minas de que é possível se autopublicar e reclamar pra si o protagonismo da produção de quadrinhos independentes.
A proposta do projeto ZINE XXX é basicamente aumentar a visibilidade e fomentar alguma confiança para aumentar a produção e consumo de quadrinhos femininos brasileiros. Para realizar este projeto, que consiste em cinco publicações, utilizamos a plataforma de financiamento coletivo do Catarse, e precisamos da contribuição de todas e todos que compartilhem desse desejo e ideal de tornar a área dos quadrinhos independentes mais igualitária e acolhedora para todas as identidades e corpos!

Vamulá, gente! Elas já arrecadaram metade dos 11 mil reais que precisam pra realizar o projeto. Contribua e ganhe um monte de brindes bacanas.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

GUEST POST: RELACIONAMENTO ENTRE PROFESSOR E ALUNA NOS EUA

Em maio, publiquei um guest post muito interessante de uma moça que sente desejo por professores universitários, e transou com um (e depois se arrependeu, porque o sujeito espalhava suas "conquistas" pra faculdade inteira). 
O post rendeu muitos comentários e uma boa discussão sobre relacionamento sexual/afetivo entre professores e alunas (eu poderia falar de professoras e alunos, de professores e alunos, de professoras e alunas, mas, convenhamos, o primeiro caso é infinitamente mais comum). 
Uma outra leitora, Rachel Mourão, escreveu um texto dizendo como isso funciona nos EUA. Ela faz doutorado em Jornalismo na Universidade do Texas, em Austin. Antes, ela havia cursado mestrado em Estudos Latino-Americanos e Comunicação Internacional da Universidade da Flórida. Ou seja, já tem mais de três anos que ela está nos EUA. Fale, Rachel!

Ao ler o texto da G. e os comentários no post, fiquei chocada com a realidade das políticas em relação à conduta sexual nas instituições mencionadas. Sou estudante de doutorado e professora assistente na Universidade do Texas em Austin e só conseguia pensar: como assim todos na faculdade sabiam que o professor fica com as meninas e ninguém toma nenhuma atitude administrativa? Como assim ele faz comentários sexuais sobre as alunas do curso e ninguém falou nada? Cadê o profissionalismo dessa administração?
Fiz faculdade de jornalismo na Universidade Federal do Amazonas e nunca percebi nenhuma atitude inadequada dos meus professores, então nunca havia pensado que não existem ações punitivas neste sentido. Sem querer julgar ninguém –- afinal, são (quase) todos adultos e (quase) todos solteiros -– acho problemática uma relação entre professor (ou qualquer outra profissão) e subordinado. Sei de casos de assédio sexual que começaram como uma paquera saudável e terminaram em uma espiral de chantagem colocando em risco o emprego do assediado/nota do aluno. 
Comecei a lembrar de algumas coisas relacionadas. Na primeira vez em que fiz intercâmbio nos Estados Unidos, meu professor americano (que eu havia conhecido no Brasil) foi me receber e eu, como uma brasileira ainda sem-noção da severidade da coisa, fui direto dar dois beijinhos, como é de costume em Manaus. Na hora ele deu um pulo para trás e disse: aqui temos que agir de forma profissional, como professor e aluno. Fiquei bem confusa: entendo que dar dois beijinhos não faça parte do costume local, mas por que esse mesmo professor sempre dava os beijinhos quando estava no Brasil, se acreditava que não fosse uma prática “profissional”? 
Agora, lendo os relatos deixados no post, entendo que para um professor no Brasil, a simples insinuação de que se tem “algo a mais” com alguma aluna é bem diferente da realidade americana. Não sei se o meu professor fez por mal, ou se tinha noção do quanto eu achei sua atitude insultante (dizer que no Brasil é ok não ser profissional).
Na Universidade do Texas, onde estudo e dou aula, as regras são claras e rígidas. Ao entrar na universidade, todos os empregados têm que fazer um curso online de ética e procedimentos gerais, que inclui módulos sobre conduta sexual inadequada. Não é a primeira vez que eu faço um curso deste tipo. Na Universidade da Flórida, durante meu mestrado, havia inclusive testes ao final de cada módulo, com simulações de possíveis situações inadequadas, para testar como aluno e professor lidariam com o caso. Entre outras coisas, a política da UT prevê punições administrativas para: 
a) Conversinhas usando termos sexuais, comentários inadequados, incluindo piadinhas e anedotas de cunho sexual no ambiente de trabalho, ainda que o alvo da piada não esteja presente. Ou seja, contar vantagem sobre a trepada da noite anterior é considerado inadequado e passivo de punição. 
b) Uso de materiais de cunho ofensivo durante aulas que não sejam relacionados ao tema do curso. Ou seja, piadinhas machistas no meio da aula, imagens ofensivas, humilhação de alunxs, etc, geram punição 
c) Não obedecer os limites da relação supervisor/subordinado, incluindo qualquer participação em relação amorosa entre supervisor, técnico desportivo, orientador etc e aluno, mesmo que em relação consensual. 
Neste caso (consensual), a relação deve ser reportada imediatamente para a administração para que se decida se constitui conflito de interesse. Por exemplo, se você for casado com um aluno que precisa se inscrever na sua aula, você deve explicar a relação para a administração, que decide se você pode ou não avaliar este aluno. 
No meu caso, meu chefe inclusive pediu para evitarmos nos encontrar com alunos fora do nosso escritório, ainda que em locais públicos como Starbucks ou biblioteca. Algumas vezes alunos pedem ajuda individual em algum projeto, e temos que estar sempre atentos pra não marcar nenhum encontro que possa ser interpretado como date. Outros departamentos têm políticas mais ou menos rígidas, mas geralmente só saímos do ambiente profissional em grupos de pelo menos dois alunos. 
As regras também garantem que qualquer denúncia seja confidencial -– seja vinda da vítima ou de terceiros, ajuda para vítimas e direitos legais para quem for acusado.
Que fique claro que não estou dizendo que nenhum professor americano tem caso com alunxs. 
Todos conhecemos, inclusive, historias terríveis de professorxs e treinadorxs americanxs que abusaram sexualmente de seus alunos. Só que, quando descobertos, geralmente não são tachados de fodões. Pelo contrário, são ameaçados de perder o emprego e ir para a cadeia (se a vitima for menor de 18 anos). 
Ainda que os EUA sejam um país bastante machista e misógino, acho importante que instituições de ensino estabeleçam limites para relações de risco, e punições para quem decide sair por ai constrangendo pessoas, especialmente se forem subordinados. Não consigo imaginar viver em um ambiente acadêmico marcado pela falta de confiança nos professores que, ao invés de criarem espaço para o desenvolvimento intelectual, decidem reforçar um sistema de opressão.

Nota da Lola: Este artigo em inglês aponta que a Universidade de Connecticut acabou de proibir interações sexuais entre alunxs e professorxs. A primeira a banir esse tipo de relacionamento foi Harvard, em 1984. Algumas universidades, como a de Iowa, proíbe apenas o relacionamento entre professores e alunxs que ele esteja ensinando ou supervisionando.
Eu consultei um professor colega meu na UFC, com muito tempo de casa, se havia alguma restrição na nossa universidade. Ele respondeu que não, e que nunca soube de nenhum problema decorrente desses relacionamentos. 

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

ATIVISTAS PELOS DIREITOS DO HOMEM BRANCO HÉTERO CHEGAM À MÍDIA

Erga-se pelo seu pênis!

Com a emancipação das mulheres, muitos homens ficaram perdidos. Se as mulheres não precisam mais deles para serem os provedores do lar, visto que elas também trabalham, qual é sua função? Se muitas mulheres não têm interesse em casar ou ter filhos, o que esses homens, que antes eram vistos como imprescindíveis, vão fazer? Se tantas mulheres não se sentem mais atraídas por um modelo de masculinidade baseado na agressividade e na competitividade excessiva, o que esses homens têm a oferecer? 
Essa sensação de “o mundo mudou, e agora?” não é nova. Muitos homens na década de 70 e 80 já sentiam essa ansiedade. Revoltados, passaram a querer voltar a uma época em que os papéis estavam bem definidos. E aí culparam as feministas em particular e as mulheres em geral por não aceitarem voltar atrás. Warren Farrell foi um dos primeiros a capitalizar em cima da insatisfação de muitos homens. Portanto, o que quero dizer é que nada disso é uma novidade. 
Em países como EUA e Austrália foi a internet que impulsionou os MRAs (Men's Rights Activists ou Movement, ou Ativismo pelos Direitos dos Homens, mais popularmente conhecidos como masculinistas, e, aqui no Brasil, pelo apelido carinhoso que dediquei a eles, mascus). Na internet homens muito frustrados com sua perda de poder na sociedade encontram espaço para se reunir e destilar seu ressentimento contra mulheres, feministas, e qualquer homem que não siga sua cartilha.
Obviamente, as feministas já sabem da existência dos mascus faz um tempinho. Mas a mídia mainstream é mais lenta. Não é a primeira vez que essa mídia os retrata, se bem que agora, nos EUA, eles pareçam estar em alta. O principal site mascu americano, A Voice For Men, cresceu bastante no último ano. Um programa de TV, o 20/20, fez um programa sobre eles (a transmissão foi adiada várias vezes e ainda não passou na televisão, mas, pela cara da repórter no preview, e pela presença de feministas entrevistadas, o retrato não deve ser positivo). 
Lógico que, quando a mídia chega perto, sites misóginos recuam, inventam que não queriam dizer o que dizem sempre, insistem que chamar todas as mulheres de vadias e que afirmar que estupros não existem, são apenas “vadias que se arrependem de terem transado”, é uma sátira. 
Camiseta vendida por MRAs
Num artigo publicado semana passada sobre os MRAs, o Daily Beast explicou que esses grupos estão divididos em basicamente três: os Pick Up Artists, ou PUAs, que veem mulheres como vaginas ambulantes e só querem transar com o maior número possível, nem que pra isso tenham que mentir (pense no personagem do Tom Cruise em Magnólia); os MGTOW (Men Going Their Own Way, ou Homens Trilhando seu Próprio Caminho), que “desistiram” das mulheres e pregam a total segregação entre os gêneros (escrevi quase nada sobre eles até agora porque não são muito populares no Brasil, mas são engraçados, e merecem ser dissecados); e a maioria, que são os masculinistas-padrão. Em comum entre os três grupos, a misoginia e a ilusão de que vivem num universo paralelo, em que as maiores vítimas de uma sociedade “b*cetista” são os homens brancos e héteros
O Daily Beast escreveu que um dos problemas que os mascus criam para serem aceitos pelo público mainstream “é sua tendência em depender de afirmações altamente duvidosas”. Como exemplo, ele cita a campanha em que os mascus brasileiros foram mais bem sucedidos: espalhar a mentira que as feministas barraram a pílula anticoncepcional masculina inventada pelo Dr. Elsimar Coutinho. Os MRAs americanos acreditaram nas mentiras dos mascus brasileiros, e passaram a repetir essa bobagem por lá também. 
Por que mulheres seriam contra a pílula masculina? Ah, porque, sabe, tudo que nós queremos é aplicar o golpe da barriga -– engravidar de um mascu ou de um homem poderoso (nem que pra isso tenhamos que pegar camisinha usada da lata de lixo) e, assim, ficar com todo seu dinheiro. 
John Hembling, ou John the Other
Diz o escritor do Daily Beast sobre o nojentinho do Voice for Men que insiste nessa besteira: “[John] Hembling se esqueceu de mencionar que os testes da pílula anticoncepcional de Coutinho foram interrompidos em 1998 porque o ingrediente ativo, gossypol, provou produzir efeitos colaterais extremos, incluindo esterilidade para homens e dano permanente para o tecido do útero para mulheres. Além do mais, sua eficácia em reduzir a contagem de esperma foi imprevisível”. 
Ainda assim, os MRAs, principalmente o Voice, que é o foco principal da história, amaram o artigo do Daily Beast, afirmando que é o melhor sobre eles já publicado na mídia mainstream. Algumas feministas americanas alegam que o artigo é bonzinho demais com esse grupo de malucos. Eu não sei. Eu achei que o artigo pinta os mascus como os lunáticos que são. Inclusive, o artigo diz que quando fez perguntas mostrando que investigou as fantasias de seu principal personagem, Hembling encerrou o contato, e ainda escreveu que o artigo provavelmente o pintaria como um fracassado sexual que mora no porão da casa da sua mãe, alegações mais comuns feitas aos mascus tanto de lá quanto daqui (por que será?). 
É também interessante que o artigo cita como modelo de civilidade entre os MRAs o Spearhead, que, entre outras coisas, é contra educação superior para mulheres, contra o voto feminino, e que culpa as mulheres pela epidemia de estupros nas forças armadas americanas. Afinal, elas não têm nada que estar lá.
Tira MRA aprova estupro e necrofilia
O artigo finaliza: “O que o MRM não parece notar é que toda vez que eles idolatram alguém que diz que o afogamento de uma menina de quatro anos é algo bom, ou riem com um líder que se gaba por tirar vantagem sexual [leia-se: estupro] de uma mulher que está bêbada demais para entender o que está acontecendo com ela, ou que teorizam que mulheres gordas querem ser estupradas, ou que lançam uma teoria mirabolante de que os cérebros das mulheres são fisicamente incapazes de compreender moralidade, eles só põem esses recursos [para ajudar homens vítimas de estupro e violência doméstica] ainda mas distantes. É emblemático que, de todas as organizações profissionais que ajudam vítimas masculinas com quem falei, todas especificamente me pediram para deixar claro que não estão relacionadas de forma alguma com o MRM”. 
Num mundo muito, muito distante...
Aqui no Brasil, os mascus eram um (ou vários) grupinhos no orkut, com alguns fóruns e blogs por fora. E continuam sendo exatamente assim, só que a maior parte migrou do orkut pro facebook, e só sobraram poucos blogs, todos minúsculos em termos de visitas e influência. Além disso, e eu orgulhosamente digo que tenho um dedo nisso, por tudo que eu zoei dos mascus, eles mudaram de nome. Não se reconhecem mais como masculinistas, já que mascu virou sinônimo de machista fracassado. Agora o único grupelho mascu que sobrou apelida-se -– ha ha, a ironia! -– realista. São os guerreiros da real, ou, como costumam ser chamados, guerreiros de um real. 
Como eu disse recentemente, os mascus que têm mais público atualmente estão ligados a blogs de finanças. São rapazes que se odeiam, se auto-intitulam pobres (mesmo o principal deles ganhando 5 mil reais por mês), feios, sem sucesso com mulheres, sem amigos. Apesar de misóginos, como todos os outros, tudo que os mascus assumidamente losers (pois boa parte dos realistas cansou de se assumir assim) querem é ficar ricos, parar de trabalhar, comprar um Camaro (é um carro, eu chequei), e formar um harém ou ter dinheiro suficiente pra pagar prostitutas de luxo toda semana. 
E, muito importante, causar inveja nos playboys. Eu diria que um terço da raiva desses mascus dirige-se aos playboys, que, segundo eles, conseguem pegar as minas que eles gostariam de pegar, outro terço dedica-se às mulheres, óbvio, que nem olham pra eles, e outro terço é contra o mundo em geral, incluindo aí o governo, que eles consideram socialista, o sistema (matriarcado, dãã), o feminismo, a ditadura gay, e tudo mais que eles conseguirem encaixar.
Não basta ser machista
Há algumas peculiaridades entre os mascus brasileiros. Engana-se quem pensa que são todos adolescentes. Pelo que observo, a média de idade deve estar nos 25 anos. São todos de extrema direita. É pré-requisito pra ser mascu. Vários são católicos, alguns evangélicos, alguns ateus. A vasta maioria é solteira, mora com os pais, e não têm nenhuma intenção de sair de casa. Ao contrário de seus pares americanos, mais velhos e muita vezes com ódio de mulheres devido a um divórcio, o maior trauma dos mascus brasileiros é que alguma garota não lhes deu bola, ou, pior ainda, os colocou na friendzone. Pois é, enquanto mulheres têm traumas com problemas de verdade, tipo estupro e violência doméstica, mascus têm trauma porque alguma menina lhes disse que deles só queria a amizade.
Se os mascus americanos pelo menos fingem (e fingir é bem a palavra) se interessar em ajudar homens vítimas de estupro ou violência doméstica, os mascus brasileiros não estão nem aí pra isso. Seus fóruns e blogs dedicam-se a comentar notícias de celebridade ou notícias claramente falsas (pelos menos 20% dos tópicos dos fóruns são sobre notícias fake), todas pra chegar à mesma conclusão -– mulheres são todas vadias -–, ou pra falar mal do feminismo (mesmo quando as personagens envolvidas nem sejam feministas; pra mascu, toda mulher é, além de vadia, feminista), ou pra atacar homens que não sigam a ideologia mascu. 
Pra um “movimento” que diz defender os homens, mascus realmente não mostram muita compaixão por homens não mascus, chamados de manginas, matrixianos, capitão salva-puta (qualquer homem que namore ou case com uma mulher que não seja virgem), cornos otários, sem-bolas etc. 
Auto-ajuda: e viveram felizes para sempre
Mas mascus brasileiros preferem tratar o que fazem -– dedicar-se 95% do tempo a falar mal de mulheres em geral e de homens que não são mascus –- como “desenvolvimento pessoal”. Ou seja, há um ou outro tópico dizendo que mascus devem estudar, ganhar muito dinheiro (nunca se fala em encontrar um trabalho que possa trazer satisfação), se politizar com Olavo de Carvalho, e fazer muita musculação, pra quando chegarem à idade mágica dos 30 anos, que é quando as mulheres perdem todo seu “valor sexual” e os homens florescem, quer dizer, florescer não, que eles são espada, todas as novinhas se jogarão aos seus pés. 
Curiosamente, a vontade toda para que esses objetivos difusos se concretizem está muito menos na missão de pegar mulher que no desejo de vingança. Mascus sonham em ver a mulher que os rejeitou acabada (obra do deus Chronos), arrependida por ter rejeitado um partido tão maravilhoso. Eles fantasiam que todas as mulheres, principalmente as "carreiristas" (qualquer mulher que trabalhe fora), vão morrer (logo), sozinhas, amarguradas, depressivas, e cheias de gatos (pelo jeito, homem que é homem não gosta de gato).
Os mascus brasileiros repararam que não vão muito longe com esse tipo de pensamento, e se contentaram com pouco, ou com nada -– ter páginas no Facebook cheias de “juvenas” que mal sabem escrever, deixar comentários misóginos, homofóbicos e racistas em portais, atacar feministas. Só. A maior piada é que os mascus brasileiros se consideram muito mais avançados que os americanos, apesar de traduzi-los e copiá-los à exaustão. 
Se os mascus americanos estão sendo agora percebidos (não com muito louvor) pela mídia mainstream, isso é porque alguns (poucos) de seus líderes têm nome e rosto. Só com nome e com rosto você pode dar uma entrevista. Duvido muito que algum veículo de comunicação queira entrevistar um mascu vestindo máscara do homem-aranha. No Brasil, nenhum figurão mascu divulga seu nome ou seu rosto. Os mascus mais famosos tinham pseudônimos como Nessahan Alita, Silvio Koerich (que se dizia um búfalo, o maior perdedor do mundo, e usava o avatar de uma menina com seios grandes), e Doutrinador (usava o avatar do Bruce Willis). Todos eles sumiram. 
Os dois únicos mascus com nome e rosto foram/são os sanctos Engenheiro Emerson e Marcelo Valle. Nenhum blog mascu será tão popular quanto o do Silvio Koerich fake na época em que viralizou por conta das denúncias (entre setembro de 2011 e março de 2012), pouco antes da prisão dos dois. Agora Marcelo está fazendo o que pode para popularizar seu novo site de ódio (só denunciem, não divulguem!), incentivando estupros corretivos, pregando a morte de “vagabundas” (qualquer mulher) e o extermínio de gays, recomendando que testes científicos sejam feitos não com animais, mas com mulheres e homossexuais. 
Deve ser chato quando os únicos rostos e nomes do seu “movimento” pertencem a dois psicopatas. Pelo menos alguns mascus americanos ainda podem aparecer na TV sem a palavra “Procura-se”. Ainda.