terça-feira, 30 de junho de 2015

GUEST POST: SOMOS CARNE DILACERADA

Recebi este texto irado escrito por Luíza Fernandes Esteves.

“França estuda proibir implantes nos seios após descoberta de novo tipo de câncer" -- Manchete da notícia veiculada por Daniela Fernandes, da BBC, em Paris, no dia 18/3/15.
Li essa manchete e dediquei minha risada amarga para a dificuldade que o patriarcado e a indústria da beleza têm para proibir implante de silicone. Até mesmo na progressista França, expoente do movimento feminista.
Imaginem, senhoras, o absurdo de proibirem peitos esteticamente perfeitos! Desde quando peitos foram feitos para bebê mamar?! Peitos estão aí para satisfazer a libido dos nossos varões, oras. Peitos são aqueles que a gente vê na Playboy; para amamentar (há despudoradas que o fazem em público, que horror) mulher tem teta, ou então usa mamadeira que fica, convenhamos, bem mais civilizado.
Aliás, ainda dá pra alugar ama de leite? Na época da servidão medieval e da escravidão tinha dessas coisas, né? Poxa vida, esses bebês são um pé no saco, capaz de a mulher ter que trocar a prótese depois de engravidar, pois pode ser que o peito caia, dizem que cai!
Ah, dando uma cortada brusca na destilação de sarcasmo, quero deixar BEM CLARO que não tenho nada contra as mulheres que aderem ao silicone. 
Não interpretem errado, por favor. Não estou aqui para ficar chamando mulher que coloca silicone de fútil ou qualquer adjetivo análogo, até porque não acho isso, não mesmo. Um, porque cada caso guarda suas particularidades; dois, porque é inumano esperar que as pessoas resistam de maneira estoica e abnegada à sedução de uma máquina que é bem maior e mais poderosa do que elas. Ademais, os irresponsáveis e imprudentes são aqueles que vendem essa ideia. Se os médicos (quase deuses da nossa era) dizem que tá bom, que tá tranquilo, seguro, quem ousaria abrir a boca para questionar?
O que eu acho escroto, vou contar pra vocês, é um profissional se formar em medicina, se especializar em cirurgia plástica, que é uma área linda e com potencial para transformar complemente a vida de quem precisa, lidar com um procedimento tão invasivo quanto esse de maneira banal só para ficar rico, poderoso e até famoso (programa de TV pra isso é que não falta).
O que eu critico é a naturalização disso em nossa sociedade, o modo leviano como a intervenção cirúrgica para fins estéticos se tornou corriqueira, e aqui não me refiro somente aos implantes de próteses mamárias. Procedimentos cirúrgicos, muitos envolvendo anestesia geral (!), são tratados pela mídia e pela indústria da beleza como se fossem uma simples mudança de corte de cabelo, um tapinha no visual.
É importante ressaltar que, de acordo com dados disponibilizados pela International Society of Aesthetic Plastic Surgery (ISAPS) em 2013, o Brasil é o país que mais realiza cirurgias estéticas no mundo, tendo ultrapassado os Estados Unidos. De acordo com o levantamento da ISAPS, daqueles que recorrem ao bisturi para fins estéticos, 14,3% são homens, e 85,7%, a esmagadora maioria, mulheres. Portanto, essa não é apenas uma questão importante no cenário brasileiro, como também é uma questão de gênero.
Entrar na faca em algum momento é quase o destino "natural" das mulheres na nossa sociedade. Somos gado. Somos vacas (o xingamento não surgiu à toa), somos carne dilacerada, cortada, somos sangue escorrendo pra encher os bolsos de médicos, de quem vende próteses mamárias, de quem fabrica próteses, de quem faz a propaganda que nos faz acreditar que precisamos dessas próteses e também de outros tantos que se interligam em uma cadeia praticamente interminável. Aí depois, senhoras, ficamos mais "comíveis", igual à carne macia da vaquinha, aquela delícia suculenta.
Quedamo-nos lindas, impecáveis, com a cinturinha fina, o seio farto e o nariz afilado (o Brasil é o número um em rinoplastia), e é precisamente dessa figura meticulosamente esculpida pelos cirurgiões que se valem os corvos para vender cerveja e desodorante, dentre outros produtos, quer tenham como alvo o público masculino ou o feminino. 
A silhueta feminina lhes é apresentada envolta em uma aura resplandecente de sedução e bem estar, mas o que o grande público não pode ver por trás dessa imagem é a lambança na mesa de cirurgia, o sangue, tecido mamário e outras partes de corpos femininos descartados como lixo hospitalar, o inchaço, os pontos, a dor, o desconforto, a adaptação e, principalmente, os riscos envolvidos. 
A cirurgia para colocar silicone, senhoras, é só um exemplo de uma série de outras intervenções estéticas que são comercializadas com a mesma facilidade de uma bolsa Louis Vitton. Acho que não preciso nem chegar ao extremo de citar histéricos como a "Barbie Humana" e seu equivalente masculino ou falar da relação turbulenta de Andressa Urach com o hidrogel para que identifiquem a esquizofrenia do mundo em que vivemos.
Tantas necessidades nos são criadas por quem quer lucrar em cima dos nossos corpos, senhoras... e elas se tornam reais, sim, efetivamente. Ficamos felizes ao alcançar uma delas, mas logo são criadas outras e mais outras. Isso não vai parar, não vai. Tenho muito medo de até onde isso irá nos conduzir. Tenho medo de onde já estamos. 

segunda-feira, 29 de junho de 2015

CAUSA SEM REBELDE

Gosto pacas do trabalho da jornalista americana Susan Faludi.
Backlash: O Contra-Ataque na Guerra Não Declarada contra as Mulheres (1991) é um clássico feminista que recomendo a todo mundo (e que pode ser lido inteirinho aqui, em português). Ela fala, de um jeito interessante e gostoso de ler, sobre a reação conservadora que os reaças lançaram no começo dos anos 1980 contra as feministas em particular e as mulheres em geral. Acho sua investigação muito importante para entender o que estamos vivendo hoje
Ainda não acabei de ler seu segundo livro, porque é longo (quase 700 páginas) e o tempo anda escasso. Chama-se Stiffed: The Betrayal of the American Man (Stiffed: A Traição do Homem Americano), foi publicado em 1999, e não foi (opa, foi sim!) traduzido pro português. Stiffed tem vários significados: roubado, traído, ignorado, esnobado, rejeitado, bêbado (sem falar que o adjetivo stiff quer dizer durão e rígido). Ou seja, um nome excelente.
Em seu livro de 2007,
Faludi trata de como o
11 de Setembro tentou
restaurar papéis de
gênero
Na sua longa reportagem, ela entrevista centenas de homens americanos em ambientes tradicionalmente masculinos -- na indústria naval, em torcidas organizadas de times de futebol americano, em algumas igrejas, no exército, em gangues de bairro -- e vê que eles estão desolados, perdidos. Com toda a prosperidade no império depois da Segunda Guerra, seus pais haviam lhe prometido um lugar especial no mundo. Um lugar de comando. Esses homens, que cresceram tendo certeza que mereciam alguma coisa que nunca foi entregue, sentem-se traídos. E, ao invés de culparem o sistema, culpam as mulheres e outros grupos historicamente oprimidos. 
Decidi traduzir um trecho de Stiffed. Peço que leiam sem a besteira de ficar ecoando "iuzomi" e "male tears", com a mesma cabeça aberta e cheia de empatia que Faludi demonstrou ao escrever seu livro:

Uma questão que tem perseguido feministas como eu é a natureza da resistência masculina à mudança feminina. Por que tantos homens ficam tão perturbados pela perspectiva da independência das mulheres? Por que tantos homens parecem recusá-la, ressenti-la, temê-la, lutar contra ela com uma paixão doentia? Essa questão lançou minha investigação. Mas, no final, para minha surpresa, não foi a questão que mais me motivou. Não é essa a questão que guia este livro. 
Porque quanto mais eu explorava o apuro dos homens pós-guerra, mais familiar me parecia. Quanto mais eu considero o que os homens perderam -– um papel útil na vida pública, uma forma de ganhar a vida decentemente, apreço no lar, tratamento respeitável pela cultura -– mais parece que homens do final do século vinte estão caindo num status estranhamente similar ao das mulheres na metade do século. 
A dona de casa dos anos 1950, despida de suas conexões com um mundo mais vasto e convidada a preencher o vazio com compras e a exposição ornamental da sua ultrafeminilidade, pode ser vista como tendo se transformado no homem dos anos 90, despido de suas conexões com o mundo mais vasto e convidado a preencher o vazio com consumo e uma exposição moldada em academias da sua ultramasculinidade. 
As compensações vazias de uma “mística feminina” estão virando compensações vazias de uma mística masculina, com o clube de charutos para cavalheiros não mais satisfatório que competições culinárias para damas, com o Nike Air Jordan não mais significativo que o Dior New Look.
Então minha pergunta mudou. Em vez de imaginar por que homens resistem a luta das mulheres por uma vida mais livre e saudável, comecei a pensar por que homens não se envolvem na sua própria luta. Por que, a despeito de crescentes birras aleatórias, eles não ofereceram uma resposta metódica e racional ao seu problema? Dada a natureza indefensável e ofensiva das exigências feitas aos homens para que eles se provem na nossa cultura, por que não se revoltam?
Como muitas mulheres, fui atraída ao feminismo pelo desejo de desafiar o silêncio do meu sexo. Mas tem me parecido que, por baixo de todas as bravatas de homens tentando abafar vozes femininas, o silêncio deles é tão retumbante quanto o nosso. Por que os homens não responderam à série de traições nas suas próprias vidas -– aos fracassos de seus pais em honrarem suas promessas -– com algo parecido a feminismo? 
Quando as fronteiras que seus pais lhes ofereceram provaram ser um deserto, […] quando as empresas que seus pais afirmaram que iriam sustentá-los os terceirizaram, quando as mulheres que seus pais disseram que precisavam ser sustentadas conseguiram seus próprios empregos, quando todo o acordo mostrou ser um embuste e ficou claro que eles foram totalmente enganados, por que os filhos não fizeram nada?
O colapso da mística feminina uma geração antes não foi apenas uma crise mas uma oportunidade histórica para mulheres. Mulheres responderam ao seu “problema sem nome” dando um nome e fundando um movimento político, iniciando um processo de se libertarem a si mesmas. Por que os homens não fizeram o mesmo? Esta parece ser para mim a verdadeira questão por baixo da “crise da masculinidade” que a sociedade americana enfrenta: não que os homens estejam lutando contra a liberação das mulheres, mas que eles se recusaram a se mobilizar para a sua própria liberação. (p. 40-1). 

Sou eu de volta. Faludi começa o trecho fazendo a mesma pergunta que a maioria das feministas da segunda onda se fazia: por que tantos homens rejeitam a igualdade das mulheres? A gente, ingênua que era, pensava que, passado o choque inicial, os homens nos dariam as mãos e viriam lutar junto com a gente por um mundo melhor, um mundo sem tantas cobranças, que também os beneficiaria. Mas não foi isso que aconteceu. Claro, alguns homens vieram. Mas muitos, ressentidos, ficaram furiosos. E, lógico, furiosos com os alvos errados.
Imagino que muita gente ao ler o trecho acima, em que Faludi se pergunta por que os homens não se rebelam e lançam o seu movimento político, pensam: ué, mas os homens lançaram seu movimento, o masculinismo. Faz-me rir. O masculinismo não é um movimento político, é só um fórum onde o choro é livre. Quando Faludi publicou Stiffed, o masculinismo já existia. Já era insignificante e ineficaz.
O masculinismo não luta por nada. Ou melhor, luta por perseguir feministas e por voltar a um tempo que não volta mais (os anos 50, ou a pré-história, dependendo da vertente). Mascus não merecem ser chamados de ativistas pelos direitos dos homens, porque eles não lutam por direitos. Lutam por uma defesa do machismo, isso sim. 
Mascus são homens de direita totalmente aliados ao capitalismo. Eles não criticam o capitalismo. Parece piada que mascus de todo o mundo tenham adotado Matrix como seu filme de cabeceira e se intitulem red pillers, tomadores da pílula vermelha, que os despertou para... para... para quê mesmo? Para odiar as mulheres, que eles já odiavam antes de serem masculinistas? 
Fantasia mascu: mulher puxa alavanca
Mascus odeiam trabalhar, sabem que são explorados, mas, em vez de combater o sistema, combatem pessoas (mulheres, negros, gays) que também são exploradas por ele. E culpam essas pessoas, e não o sistema que os explora, por sua eterna insatisfação. 
Sonham em galgar posições dentro desse sistema para que eles também possam explorar. Esta é a única saída que vislumbram: virar explorador. Não derrubar um sistema explorador e opressor que também os oprime. Evidente que, com essa mentalidade, estão fadados ao fracasso.

domingo, 28 de junho de 2015

FRESCURAS SOBRE SEXO

No guest post sobre a lista deixada na USP, vários comentários que merecem destaque:

"Olá a todxs. Sou estudante da ESALQ e construo o coletivo de mulheres Raiz Fulô, de lá. Como está todo mundo discutindo o assunto pela mídia e ninguém perguntou o que realmente aconteceu, é o seguinte: isso não é um ranking sexual de quem os meninos pegaram. A proposta era 'zoar' as pessoas com características tidas como indesejáveis. Esse cartaz foi feito no começo do ano com os calouros que foram almocar ou jantar em uma certa república. 
O problema foi expor as pessoas com adjetivos racistas, machistas e homofóbicos e o quanto isso é naturalizado, pois esse cartaz ficou vários dias exposto no mural até uma das meninas ver e colocar um texto no face.
A grande questão de debate que estamos tentando colocar na faculdade é a naturalização do preconceito. Qual o problema em alguma das referidas características? Porque em algum momento esses caras acharam que seria engraçado classificar as pessoas, e quando a coisa pegou ninguém assumiu, se era 'só uma brincadeira'?" (Raquel)

" 'Queridos, se ela pegou todos vocês, foram VOCÊS que rodaram na mão dela e não o contrário'. 
Tive que compartilhar essa postagem com a frase acima. Essa frase era tudo o que eu precisava escutar de alguém durante a minha adolescência. Fui uma daquelas garotas 'rodadas' do bairro, e na época me envergonhava muito disso. Hoje, muitos anos depois, sinto uma sensação plena de que aproveitei muito bem a minha adolescência. Parabéns pelo texto!" (Daniela)

"Não acredito que deva imperar esse radicalismo, homens são todos babacas, sociedade dominada só por mulheres etc. Eu tenho namorado, e ele me respeita, e gosta do meu corpo do jeito que ele é (sim, isso mesmo com peito preto, com buceta sem depilar). Não são todos os homens que são idiotas.
Eu por exemplo gosto de homem que se depila na virilha, e ele faz isso. Agora, gente, o problema são as pessoas quererem ficar acreditando que existe um padrão de perfeição, para mulheres uma buceta depilada, cu rosa, bico do peito rosa, e homens um pinto grosso, grande, tem que ser musculoso etc.
Tem que parar com isso, o prazer entre duas pessoas está muito além de tudo isso. O sexo mais gostoso que eu já tive foi com um cara completamente fora dos padrões (pinto pequeno, barrigudo), mas o cara além de ter um jogo de cintura incrível, era super educado, e muito bonito e atraente sob a minha percepção, na hora do sexo a transa foi ótima, repetimos a dose e foi incrível.
É notável que os rapazes que fizeram essas listas, são seres muito infantis que nunca devem ter tido uma foda boa, insatisfeitos com o próprio corpo iludidos, coitados" (Anônima)

" 'Como já foi dito, é simples: esses homens não gostam de mulher'.
É simples assim. Sou mulher e já transei com mulher com pelo, depilada, gorda, magra. Mulheres têm estrias, têm celulite, têm gordura na barriga. E, aliás, o gosto e a visão de uma mulher gozando para você vale a pena ter que passar fio dental depois. 
Sou mulher e já transei com homem com pelos aparados e homens com as costas peludas. Homens gordos, homens magros, homens sarados. Homens têm pelos grossos, barba que às vezes arranha, e muitos são inseguros na cama.
Quando um homem se solta, geme e goza para mim, eu vou ao céu e volto, goze ele dentro de mim, na minha boca, nos meus seios, no meu corpo. 
Pessoas que ficam com nojinho de sexo, para mim, não gostam de sexo. Orientação sexual é uma coisa. Nojinho é outra. 
Eu acho um porre essa galera que fica de mimimi. E, honestamente, se uma pessoa viesse me encher o saco por causa do meu corpo, dos meus pelos, da cor do meu cu ou dos meus mamilos, eu mandaria passear mesmo.
A minha grande sorte é que todas as pessoas que fizeram parte da minha vida sexual se derramaram em elogios para o meu corpo. Mesmo eu com 20kg a mais do que peso hoje ou 10kg a menos do que peso hoje, sempre fui elogiada, sempre demonstraram enorme prazer em desfrutar comigo de momentos íntimos. 
E se alguém saísse do quarto porque encrencou com alguma parte do meu corpo, eu me resolveria sozinha e nunca mais procuraria o ser ignóbil. 
A pessoa tem toda a liberdade para ser babaca. Mas não na minha companhia." (V.)

"Eu realmente devo ter morado em uma caverna nas últimas décadas. Nunca, NUNCA imaginei que mamilos escuros fossem problema para alguém.
Estranhas prioridades dessa gente." (Ariel)

"Ariel, Você deve estar se sentindo como eu me senti quando, de repente, descobri que meninos que se declaram machões machíssimos virilésimos têm nojinho de pêlos pubianos. Vi alguns enchendo a boca para dizer que iam até embora.
Eu honestamente acho que isso tudo é parte e fruto do backlash tupiniquim. Não é possível, fui adolescente nos anos 90 e as pessoas jovens não tinham essa cabecinha tacanha. Fiz duas faculdades e NUNCA vi nada parecido, nunca vi tamanha preocupação coletiva com a vida sexual de terceiros. Nunca vi um grupo de alunos se mobilizar por meio segundo que seja para fazer algo como essa lista." (Anônima)

sábado, 27 de junho de 2015

CORTE DOS EUA LEGALIZA CASAMENTO HOMOAFETIVO, E A GENTE COMEMORA

Ontem foi um dia histórico nos EUA: a Suprema Corte legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo em todo o largo território americano. 
Antes disso, o casamento homoafetivo era permitido na maior parte dos 50 estados, mas ainda proibido em 14. O tribunal decidiu, por 5 votos a 4 (ou seja, uma margem estreitíssima, e se não fosse pelas três juízas, a legislação não teria passado), que nenhum estado pode ter legislação exclusiva e proibir o casamento gay. O Texas, aquele estado tão reacionário que Louise preferia contorná-lo para chegar ao México, já avisou que não seguirá a lei.

Estátua de Alan Turing
amanheceu coberta
O governador do Texas disse, num tuíte: "O casamento foi definido por Deus. Homem nenhum pode redefini-lo. Defenderemos nossas liberdades religiosas". Um procurador declarou: "Longe de uma vitória para alguém, esta é a dissolução do casamento como uma instituição da sociedade". O partido republicano divulgou uma nota lamentando a decisão: "O respeito pela lei e pelo tecido moral da América foram deixados de lado pela Suprema Corte". 
Obviamente que pessoas menos tapadas e conservadoras tiveram outra reação. O presidente Obama usou a hashtag #LoveWins (o amor vence) e afirmou: "O dia de hoje representa um grande passo na nossa marcha para a igualdade".
Uma senadora democrata pelo Texas disse: "Por todos aqueles que morreram lutando em Stonewall, tiveram atendimento de saúde negado durante a crise da Aids, estão sem moradia e afastados das suas famílias e amigos, e que agora tomam a frente para serem legal e publicamente reconhecidos como um amoroso e orgulhoso casal do mesmo sexo, esta vitória é para vocês". 
Nos EUA e em todo o mundo, a comunidade LGBT e simpatizantes comemoraram. Vários casais americanos que haviam se casado em outros estados agora planejam fazer uma outra cerimônia no local onde moram. 
É muito emocionante mesmo! Eu me lembro quando morava nos EUA, em 2007/8, e só era possível um casal gay se casar no Massachusetts. Eu me lembro quando o casamento gay foi derrotado em plebiscito até num estado tido como progressista como a Califórnia. 
Parece que a opinião dos americanos mudou bastante nos últimos cinco anos, a julgar pelas pesquisas. Até 2010, entre 40 e 45% dos entrevistados em todo os EUA apoiavam o casamento gay. A última pesquisa, divulgada em maio, mostrou que hoje a maioria (60%) é a favor. Quase vinte anos atrás, apenas 27% apoiavam. Será que essa mudança enorme teria acontecido se o movimento LGBT, que os homofóbicos chamam de "gayzista", não tivesse se mobilizado?
O choro dos nossos reaças seria divertido, se não fosse trágico:
Se igualdade de direitos é decadência moral, me vê logo duas, por favor!
Um monte de gente em todo o mundo cobriu o seu avatar com as cores do arco-íris (ficou lindo!). Mas eu e muitos outros demoramos a entender que o que a Corte nos EUA decidiu ontem o Supremo Tribunal daqui havia decidido em 2011. Uma matéria ontem no Terra explicou as diferenças:
Pedi a uma leitora formada em Direito que falasse sobre o que o STF decidiu:

Em 2011 a ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 4277/DF requeria que fosse reconhecida a união homoafetiva como entidade familiar.
Acompanhando o voto do relator, ministro Ayres Britto, o Plenário do STF decidiu, por unanimidade
pela procedência das ações propostas e com efeito vinculante, dando interpretação conforme a Constituição no sentido de excluir qualquer significado do artigo 1.723 do Código Civil que pudesse vir a impedir o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar.
O relator esclareceu que o texto constitucional, ao prever "homem e mulher", não excluiu outras formatações de família, não há a expressão “apenas”. Um exemplo disso foi que, já com a promulgação da Constituição, existiu a ampliação da proteção do Estado à família pela concepção de outros tipos de entidades familiares como aquela formada pela união estável e a família monoparental, ou seja, aquela formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
Assim, irmãos que vivem juntos, avós e netos e uma infinidade de formas é considerada família e digna da proteção do Estado.
A Constituição não teria proibido a união homoafetiva como entidade familiar, e tal entendimento estaria em desconformidade com todo o texto constitucional e com os princípios da igualdade, dignidade da pessoa humana, não-preconceito e com os demais direitos fundamentais relacionados ao ser humano. 
O ministro Joaquim Barbosa ressaltou que o amparo para essas uniões não se encontram apenas descritas no art. 226, § 3º da CRFB/88, mas em todo texto constitucional, que garante os direitos fundamentais. Para ele, o Direito não acompanhou as mutações sociais em esfera global, e que o ordenamento jurídico brasileiro nem cita e nem proíbe o reconhecimento das uniões entre pessoas do mesmo sexo, muito pelo contrário, busca mitigar toda forma de preconceito e estabelecer a justiça social entre todos. O ministro votou pela procedência dos pedidos.
O que aconteceu, no presente caso, foi uma mutação constitucional, assim definida por um juiz baiano e doutrinador de direito Constitucional, Dirley da Cunha Júnior [Jus Podium, 2009. p. 257]:
“[...] a mutação constitucional é um processo informal de alteração de sentidos, significados e alcance dos enunciados normativos contidos no texto constitucional através de uma interpretação constitucional que se destina a adaptar, atualizar e manter a Constituição em contínua interação com sua realidade social. Com a mutação constitucional não se muda o texto, mas lhe altera o sentido à luz e por necessidade do contexto. É um fenômeno que vem se revelando necessário para a respiração das Constituições, cujos enunciados muitas vezes ficam asfixiados à espera de revisões formais que nunca vêm ou que, vindo, não atendem as demandas do texto e dos fatos.”
Como exemplo que ouvi em sala de aula de outro baiano que sou fã, o professor Fredie Didier Jr, que cita uma placa, na praia, com os dizeres: PROIBIDO O USO DE BIQUÍNI. Esses dizeres lidos pelos frequentadores da praia nos anos 1950 seriam interpretados de duas formas: ou só se pode usar maiô ou não é preciso ir à praia de roupas normais, do dia-a-dia. 
Situação diferente é se tal placa fosse lida por frequentadores dessa mesma praia, só que nos tempos atuais. Dificilmente a leitura seria a mesma que mencionei. Muito provavelmente a leitura de hoje seria: é uma praia de nudismo, precisamos tirar o biquíni!
É interessante notar que o texto da placa e o local em que está localizada não foram alterados. No exemplo dado, as pessoas que liam a referida placa foram as únicas que mudaram com o decorrer dos anos. Assim, fica mais fácil entender que o direito e as normas são produtos de uma sociedade viva e em constante modificação.
Não se pode esperar que a Constituição de 1988 expressasse de maneira fiel, ainda hoje, todas as mudanças ocorridas na sociedade, devendo ser reconhecida a mudança da leitura. 
O pastor Silas Malafaia critica o STF pela decisão, dizendo que quem legisla é o parlamento, mas esquece-se que o mesmo parlamento que escreveu a família de homem e mulher deu ao STF a prerrogativa de interpretar a Constituição para sobrepor os princípios sob os quais a sociedade está formada aos textos frios das normas.